Sábado fui com alguns amigos assistir ao show do projeto paralelo do Mano Brown no SESC de Santo André. Junto com Ice Blue, companheiro de Racionais Mc’s, Helião (RZO) e mais um time responsa de dois DJs, quatro cantores, um guitarrista monstro, um tecladista virtuoso e dois dançarinos, o maior nome do rap nacional comanda a “nave” batizada de Boogie Naipe. Geralmente guardo esse tipo de experiência para mim e não misturo os textos que eu deveria escrever com relatos como este, mas dessa vez foi diferente e, mesmo durante o show, não conseguia parar de pensar que precisava escrever sobre isso. Pois então, aqui está.
Primeiramente, é indispensável dizer que sempre quis ver uma apresentação do Brown ao vivo. Meu objetivo sempre foi ver um show dos Racionais, mas por falta de oportunidade (e culhão) não o fiz. Sábado a pegada era diferente. Primeiro porque era no SESC, um lugar com uma tradição de shows seguros e tranquilos para todo mundo se divertir sem esquentar a cabeça. Depois porque, como mais tarde eu descobriria, a vibe do show também seria outra.
Chegamos cedo, deu tempo da galera fumar um cigarro, tomar uma cerveja, conversar, esperar uma outra amiga nossa chegar e aí sim fomos para dentro. Num espaço bem grande, pé direito de uns mais de dez metros de altura e sem cadeiras, o palco estava armado com um pano preto exibindo as tradicionais máscaras da dramaturgia (feliz e triste) e o nome do projeto no meio. À partir do início do show três coisas me chamaram a atenção:
1. Mano Brown feliz: Desde bem pequeno, sei lá, uns 8 anos de idade, ouço Racionais Mc’s. Estou acostumado a apreciar as batidas pesadas e as letras, na maioria das vezes, violentas. Hoje em dia me acalma, me fortalece e inspira. Mas mesmo sendo um som que muito me agrada, continua sendo um tipo de música pesada, de clima pesado, porque os assuntos nunca são muito macios. Junto com esse pano de fundo denso, sempre me lembrei da posição anti-mídia dos Racionais e, principalmente, da fama e cara de ruim do líder do grupo. Sendo assim, esperava encontrar esse clima no show. Mas assim que chegamos, mesmo antes de começar a apresentação, já dava para perceber que as coisas seriam diferentes.
De repente o show do Brown, aquele de sempre, bravão, violento e intimidador, estava cheio de casais descolados, gente de camisa listrada, com cara de hipster e meninas brancas de cabelo arrumado que, se eu encontrasse em uma baladinha qualquer, passariam despercebidas, mas ali me pareciam (por puro preconceito, assumo) estranhas no ninho. Ao longo do show fui percebendo, com certa estranheza, que no palco tinha um Ice Blue saudosista, um Helião comedido, apesar do terno e das correntes brilhantes, e um Brown descontraído, dançando, mesmo com um gingado duro e quadrado, sorrindo e se divertindo mais do que trabalhando.
Quando, no meio da noite, tocaram “1 por amor, 2 por dinheiro” com um arranjo bem diferente do original, muito mais leve, swingado e extrovertido, me peguei dançando e a maioria das pessoas ao meu redor estava fazendo o mesmo. Sem dúvida fui muito feliz em “conhecer” um dos meus maiores ídolos da música em um clima tão leve como o de sábado.
Tudo bem que seria muito emocionante ouvir a voz de trovão lançando o famoso “FÉ EM DEUS QUE ELE É JUUUSTOO…”, mas talvez eu não conseguisse sair tão animado do show. Gostei de ver o Brown dançando, sorrindo, fazendo piada, conversando de futebol com o Blue e cantando “Lady, hear me tonight…” do Modjo, mesmo sem mandar nada bem no inglês!
2. True Funk: Logo na abertura do show, com os DJs misturando uma porrada de samples de músicas diferentes já deu pra sacar que não era exatamente um show de rap. Mas foi na voz do próprio Brown que a real intenção da coisa toda foi anunciada. No meio de um beat bem diferente da melancolia e dos tons sombrios das músicas normais dos Racionais, o negão de óculos escuros, calça social e moletom largo anunciou dançando. “Legal… esse som é funk!” E era mesmo, quem poderia discordar? O maior motivo de todo aquele clima descontraído era o fato de, realmente, não estarmos num show de rap, mas sim, num grande baile funk com gente moderninha e, até então, acanhada de mais para aproveitar totalmente a animação das músicas.
E quando digo “funk”, espero que você esqueça tudo que é baixaria, carioca, repetitivo e com zero musicalidade aproveitável aos ouvidos. É o verdadeiro funk, o som que se baseia no grave, que faz tremer a camisa, da nó na orelha e convida o corpo a qualquer movimento, por mais tímido que seja. O funk do Boogie Naipe é o tipo de som que meu pai e meu tio dançavam quando tinham alguns anos a menos do que eu tenho hoje. Era o tipo de música que a galera gostava de dançar nas baladas para impressionar as gatinhas, dando mortal na parede e suando a camisa, literalmente, em passinhos previamente ensaiados. Na verdade, o clima era esse mesmo, de música antiga, bailão alegre e batidas pra dançar de passinho ensaiado com os parceiros.
3. Meninas Negras: Podem dizer que estou sendo extremista, mas me reservo ao direito de generalizar em alguns momentos. Nesse caso, aqui vai minha generalização sem medo: nenhum tipo de mulher dança como dançam as meninas negras! E quando digo “negra”, não se prenda só à cor da pele, mas sim às meninas com o sangue negro, as que só de olhar você já sabe que têm pai preto ou mãe preta. As que botam o cabelo preso de lado, ou que exibem um black power de responsa mesmo tendo aquela corzinha de café com leite mais leite, menos café. Essas meninas são as verdadeiras rainhas do corpo e o som da noite parecia feito para cada uma delas, que eram maioria na platéia.
Fiquei um tempo parado olhando duas amigas que estavam à minha direita, um pouco mais pra frente. Já sabia que ia escrever um texto sobre o show, mas foram elas as responsáveis por me fazer perceber que, mais do que um som inesperado, aquele show tinha um público inesperado. Dois passinhos pra esquerda, uma gingada com o quadril, depois mais dois passinhos pra direita e outra gingada. Em qualquer balada de hoje em dia os passos ensaiados são abominados, mas ali eram tão coerentes e estavam sendo tão bem executados que ninguém julgava, ninguém ligava, estava cada um curtindo a sua festa particular.
A diferença da dança dessas meninas, que se multiplicavam às dezenas assistindo ao show, para a dança de todas as outras mulheres mortais do mundo é que, no caso delas, o corpo dança junto com a música, não simplesmente dança. As batidas vêm nos ombros, a cabeça vai e vem, a cintura vai pra frente e pra trás e os dentes estão sempre à mostra. São movimentos curtinhos, coisa delicada, de gente fina mesmo, mas expressam muito mais do que qualquer maluca batendo cabelo na balada bêbada e sozinha. A dança delas é quase a voz do corpo, é um cantar silencioso e emocionante. E é por isso que digo com certeza que ninguém dança como dançam as meninas negras, assim como ninguém faz baile funk quanto Mano Brown e sua “firma”!
* este blog não costuma ser factual, o texto acima é uma exceção saudável.