Coisas enormes fazem parte de mundos que criamos e nunca mais cuidamos. Somos irresponsáveis por nossas criações e muito responsáveis e zelosos por nossas necessidades. Não damos a devida atenção a tudo que fazemos, mas dedicamos todas as nossas energias às coisas que nunca faremos. Amamos o que não temos, desejamos o indesejável e desprezamos posses valiosas a outros. Somos mesquinhos, por esse ponto de vista. Ontem, lendo um livro que eu tô lendo, percebi que existem coisas imensas acontecendo por nossa culpa, por nossa causa, em nome de nossos nomes, mas não nos damos conta.
Percebi que a minha boca é uma caixa de invenções cujas quais não sei usar nem batizar. Não sei categorizar minhas mentiras, nem meus elogios recheados de neologismos. Invento palavras para expressar sentimentos que ainda não sinto e pinto cores invisíveis para enfeitar sentenças que ainda não foram sentenciadas. Crio palavras com o objetivo de matar dúvidas, torturar mentes, aprisionar corações e ludibriar certezas. Crio, com a boca, essa mesma que me serve de entrada para alimentos e águas, substâncias para “monstruir constros” inteiros. Têm olhos, mente e objetivo, mas não têm nome nem propósito definido. São criações que eu desprezo no exato segundo seguinte após seus nascimentos. Nascem todos os dias!
Meu ventre, esse ventre proeminente, que gera vida como as mulheres, mas não gera a mesma vida que elas geram, me faz apertar os lençóis, morder os beiços e rezar por trégua. Dou a luz a máquinas inteiras todos os dias. Invento lâminas que cortam laços, prensas que moldam relações e furadeiras que vazam placas de confiança. Crio destruições para destruírem minhas criações. Minha barriga, meu ventre, meu átrio, se diverte entre uma máquina e outra. Nos intervalos dessas violências a que dou luz, minhas entranhas se ocupam de criar borboletas, louva-deuses e joaninhas. São diversões que me consomem o humor, mas que acalmam a carne interna, as mucosas do estômago, seu ácido mortal e todos os túbulos que dele derivam.
Meus olhos criam pessoas que não existem, cores que não se pode ver, formas que não têm formato e paisagens que ainda não nasceram. Crio curvas em corpos de mulheres que são homens e crio homens no corpo de animais que são pedras e crio pedras na forma de bichos que são mulheres. Crio coisas para ver o que quero e não vejo o que as coisas criaram para me ver. Os ouvidos trabalham junto com os óculos, me fazendo ouvir o que ainda não existe, sentir a voz das árvores jovens que ainda não aprenderam a calar e pensamentos, que também não existem, ganham vozes, que não soam nada. Vibração de ar, vento, sopro e absurdo. É isso que vem! Leio jornais de amanhã, com notícias que ainda não existem e mortes que ainda não morreram. Vivo fora do meu relógio.
Transo transas solitárias, passo horas de solidão em orgias desenfreadas, assisto às noites pela parede da janela, acordo com os raios do sol entrando pelo chão e nada mais pode me adormecer. Criei um ritmo biológico onde o sono vem em forma de euforia e a produtividade é fantasiada de desejo alimentar. Como para criar e crio para comer. Não vendo nada, nem compro, só cedo e roubo, porque emoções alheias não se pede, se toma. Tomo confissões inteiras de gente que ainda não me conhece, amo seres inanimados que jogaram a vida na sarjeta beijando bocas de lobo cheias de lixo entulhado. Minha cidade ainda não percebeu minha presença, mas um dia perceberá! Será como uma linda festa onde o mestre de cerimônias, a bailarina, o porteiro e o assassino serão uma pessoa só. E não será eu, nem mim, nem ninguém que me é.
Crio tudo isso e desprezo em seguida. Não valorizo essa maravilha revolucionária que me salta aos olhos, me vomita à boca e me enche de esperanças falsas. Não dou valor a nada que meu corpo proporciona, nem a nada que meu inferno me regula. Sou só circunstância, sou só vivência diária, coincidências e amebas na maionese. Estão lá, sempre estarão, assim como eu estou aqui e sempre estarei. Inventor do meu próprio estado de espírito, do próprio espírito, na verdade, e criador, também, da definição do que espírito significa. Sou inventor de todas as minhas coisas, inclusive da teoria de que sou o criador das teorias. Crio tudo com o corpo, mas nada com a mente. Ela está inútil desde o dia de sua concepção.