Ela me olhava quando eu não estava olhando. E quando me via atento ao caminho, olhando para frente, pensava em quanto me queria para si. Mas eu me virava e ela disfarçava, fingia estar olhando depois de mim, pela janela, lá fora, e eu fingia não perceber a mentira. O carro quentinho, mas a chuva e o frio batendo cartão do lado de fora e o destino era qualquer lugar. Era pretexto, só pra ficar junto, só para poder olhar para mim.
Tinha aqueles vícios de gente que não consegue aceitar que gosta de alguém, tipo ter fantasias sexuais e, quando se dá conta de com quem está fantasiando, mudar o personagem sem mudar o desejo. Me falava sobre outros caras, me pedia para dar opinião, aparecia nas festas acompanhada e eu, sempre ali, fingia que não me afetava vê-la com alguém. Talvez eu a quisesse tanto quanto ela me queria, mas de um outro jeito.
Ouvi esses dias, vendo um filme babaca na televisão, que é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo, mas que é impossível estar apaixonado por mais do que uma pessoa por vez. É assim que a gente escolhe quem vai ficar com a gente, e quem vai caçar outro coração pra habitar. Mas ela negava isso. Eu negava isso. E nesses dias em que a gente “tinha” que se ver para falar de alguma coisa, para planejar alguma coisa, a gente fingia que ninguém queria ninguém.
Às vezes ela aparecia no telefone me falando que estava sozinha, perdida, me pedindo para buscá-la em algum lugar, na casa de alguém, na festa em algum lugar. Eu sempre ia. Não porque me preocupava, mas porque era uma chance de aproveitar seu estado fragilizado e me colocar ou pouquinho mais pra dentro, só para ganhar espaço, para ser a primeira opção na alegria e na tristeza. Eu a queria tanto, mas tanto, que nem sabia disso.
Um dia não ligou, simplesmente apareceu. O porteiro deixou subir sem avisar, era quase 2h da manhã, eu estava sozinho, vendo qualquer coisa na televisão, sem vontade de ir para lugar nenhum. A campainha soou no apartamento escuro e eu dei um pulo que case me custou a vida. Fui até a porta sem ter a menor ideia de quem poderia ser, mas torcendo para encontrá-la do outro lado da porta. E quando a luz do corredor tocou meu rosto, os lábios dela tocaram os meus. E foi ficando, de vez, curtindo aquelas magias estranhas que envolvem os primeiros beijos em alguém.
Pediu para ficar, me convidou para ir para a minha própria cama, fez questão de ficar em cima de mim enquanto tirava a roupa e enquanto fazia isso ficou me olhando o tempo todo, sem desviar nem um segundo, descontando todas as vezes que me olhava sem que eu pudesse saber. Quando já não faltava quase nada para tirar, atirou-se ao meu lado na cama, olhou para mim com o canto do olho, como fazia sempre e me disse que era minha, daquela noite em diante, para fazer o que eu quisesse, “por toda a eternidade”.
De repente o frio do quarto não era mais páreo para sua presença e o calor que emanava poderia abrir fogo em todas as coisas ao redor. As luzes se apagaram como mágica e as costas dela se fizeram de cama para mim. Era uma daquelas transas que definem o destino da vida de duas pessoas dali em diante. E ela, covarde e burra, decidiu dizer que estava bêbada, que não sabia o que tinha feito, quando acordou pelada na minha cama, no dia seguinte. Estava decidida a lançar todo o progresso fora por causa de uma dúvida, ou um punhado de medos infantis.
Tem gente que prefere o jogo à vitória, e voltamos à estaca “0,1”, que é quase igual à estaca zero, com a diferença de que você já começou aquilo antes e, mesmo sem ter tido sucesso, está prestes a começar novamente.