Arquivo mensal: maio 2013

Cia. Marítima Do Lado De Lá

Tinha um navio que levava as pessoas pro lado de lá, mas ninguém podia comprar passagens para ele. Era preciso ser sorteado. E mesmo que muitos dissessem que eram armados, os sorteios eram sempre aleatórios e baseados apenas nas infinitas probabilidades. Era o maior navio do mundo, ficava há um dia de barco da costa continental. Era grande demais para se aproximar dos portos, então ficava boiando nas águas profundas esperando os novos passageiros. Eu e você poderíamos estar lá.

A pessoa era sorteada e avisada imediatamente por alguém da Cia. Marítima Do Lado De Lá. Vinha, sempre, uma mulher, vestida de marinheira antiga, tipo aquelas pin-ups dos anos de guerra americana. Ela aparecia sorridente, entregava a passagem e você deveria largar tudo e ir. Não havia tempo para avisar familiares, amigos, chefes, ninguém. Era hora de viajar! E você e eu iríamos, se fossemos chamados. As pessoas que recebiam a visita da marinheira eram encaminhadas para um transporte, que podia ser um ônibus, aqui no Brasil, ou um rickshaw em países orientais. Não importa, o que importa é que todos eram transportados até o porto.

Lá eram todos colocados em galpões de estocagem. Milhares e milhares de pessoas vestidas como foram encontradas pela marinheira, alguns até mesmo pelados, enfileirados e prensados para o espaço render. Depois que chegavam todos, o que às vezes podia demorar dias, as portas se abriam. A multidão era reorganizada e centenas de barcos menores eram lotados com essas pessoas. Esses barcos iam saindo em direção ao horizonte, cortando as ondas no sentido perpendicular às suas extensões, balançavam horrores e alguns passageiros caiam na água. Uns eram atropelados, algumas raras vezes conseguiam nadar até a costa e voltar às suas vidas normais ou, como era mais comum, eram apanhados pelos “pescadores” dos barcos que vinham depois.

Pescadores eram homens que ficava com metade do corpo para fora do barco, presos por amarras ao casco, e seguravam cordas e redes como as de laçar bois e caçar cachorros do mato. Eles resgatavam as pessoas e as puxavam para dentro de seus barcos. Pescadores competentes podiam ganhar até dez mil libras esterlinas por pessoa resgatada. Não importava o país de onde estavam saindo, os pescadores eram sempre os mesmos e o pagamento sempre era promovido pela coroa britânica, coisa que ninguém explica muito bem como acontece. Sabia-se apenas que esses homens eram muito ricos, muito velhos e jamais largavam o mar.

Depois de cruzar um bom pedaço do oceano, anoitecia, todos dormiam e acordavam com a luz do dia nascendo e, no horizonte, bem à frente, podiam ver o enorme casco dourado do navio. “Nyumba-Kaya” era o nome da embarcação. Era maior que tudo já visto no mar. Podia ser mais alto que a maioria das plataformas de petróleo e, com certeza, era o maior corpo em movimento de todos os oceanos da Terra. Por dentro, dizem, é todo branco, e por fora, com seu casco de ouro quente e brilhante, não havia marcas de soldas, rebites ou parafusos. Era como se fosse uma única peça concebida de uma vez só.

Quando chegavam todos os barcos ao redor do navio o silêncio se instalava. Os pescadores e comandantes das embarcações menores se recolhiam para dentro de seus cascos, fechavam as portas e os sorteados ficavam esperando serem chamados. Então o navio tocava uma buzina muito grave, quase como o som do silencio. Ao mesmo tempo, por suas gigantescas chaminés expelia uma densa e intensa fumaça vermelha, como se fosse sangue em forma de vapor. O sol intensificava o reflexo do casco, todos ficavam maravilhados com o brilho amarelado do navio, olhavam fixamente e iam ficando cegos, queimando as retinas, fritando os olhos enquanto ensurdeciam com a vibração grave demais do toque de partida.

Tudo ficava branco, silencioso e imóvel por alguns segundos e depois estava tudo bem. Restavam apenas incontáveis barcos vazios ao redor de um espaço oco no mar, há muitas horas de distância da costa e nada mais ao redor. Os marinheiros e pescadores saiam, olhavam-se, davam gritos e apitavam suas buzinas comemorando mais uma entrega bem sucedida e, depois de realizarem um banquete de comemoração, rumavam para outro país, outro continente, outro lugar qualquer, onde novos sorteados teriam o privilégio de partir para o lado de lá. Um dia seremos eu e você.

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Quando a gente se cala

É a velha história do vivo e do morto: é mais tranquilo estar na presença de um vivo falando merda do que na de um morto não falando nada. Frequentemente nos esquecemos desse termômetro, mas ele se aplica a quase todas as situações da vida. Enquanto as pessoas estão falando, seja o que for, elogios, críticas, agradecimentos, acusações, as coisas ainda têm a obrigação de serem flexíveis. Falar com alguém, ou para alguém, é pedir para conversar, é se mostrar, mesmo que inconscientemente, aberto a mudar de opinião, a chegar a um acordo. Quando não há conversa, quando tudo está em silêncio, a flexibilidade se torna dura como pedra.

O bom é que na maioria das vezes não são coisas definitivas. Geralmente o silêncio não significa o fim de alguma coisa, ou a decisão de algo. É simplesmente o sinal de que, naquele momento, alguém está sólido, inflexível. Às vezes o que a gente mais quer é alguém que tenha a capacidade – e a sensibilidade – de nos amolecer novamente. Num mundo onde o importante é manter a bunda sempre firme, os peitos sempre bem duros, a pica sempre bem rígida e os punhos sempre bem fechados, tem gente que ainda consegue perceber o valor e a necessidade das pessoas que nos amolecem.

Ser inflexível é o primeiro passo para fracassar em tudo que você fizer. Quer criar uma coisa nova? Aceite mudanças no projeto, desvios, ideias que surgem no meio do caminho. Quer tomar um rumo na vida? Aceite que nem sempre os planos acontecem como foram planejados, nem sempre as pessoas são legais, nem sempre os caminhos vão dar onde dizia o mapa. Quer ser uma pessoa melhor? Aceite seus defeitos, depois entenda e perdoe o dos outros, engula, mesmo que à seco, a verdade de que quem cria as expectativas é você e quem as frustra não tem culpa de não ter seguido os seus planos. Pessoas seguem os próprios passos e só os flexíveis conseguem viver num mundo imprevisível assim.

Mas às vezes, mesmo quando você se esforça para ser fácil de lidar, mente aberta, dinâmico como água, a vida cobra o peito, a bunda, a pica e os punhos rígidos. E aí é quando acontece uma das coisas mais incríveis do ser humano – e que a gente quase nunca percebe – flexível. É quando a gente se cala! De repente o mundo ganha outras cores, a textura de tudo muda, o movimento das coisas que balançam com o vento, as vozes, as músicas, as figuras e a gente simplesmente se tranca dentro. Não há assunto que dure, programa que anime, proposta que aqueça. A boca se cala com um sabor de recém dormido, um amargo biliar esquisito e os pensamento conversam uns com os outros, sozinhos, sem te chamarem para a discussão.

“Tá bom demais lá fora, mas eu vou ficar aqui mesmo”, e os outros dizem que tudo bem. Ninguém percebe a diferença entre o sono e o silêncio, o senso e o sentido, o tato e o toque, o paladar e a palavra. As coisas têm nuances, são diferentes e precisam ser notadas, digeridas, oferecidas e ensinadas. O ser humano é um pedação grande e torto de um vidro muito fino que a gente insiste em equilibrar em pedestais muito altos e estreitos. As relações são mais complexas que isso, mesmo assim, ninguém disse que precisam ser complicadas.

Mas aí as horas passam, o dia passa, os dias passam e a gente, como se fosse mágica,  volta a falar. Às vezes dura apenas alguns minutos, é como se fossemos desligados da vida para ficarmos inertes, flutuando leves por alguns minutos para voltar e entender, de uma vez por todas, tudo o que antes parecia nebuloso misturado em palavras e dizerem desnecessários. O ponto é que as pessoas precisam ouvir, umas às outras, com atenção. Mas, acima disso, precisam saber que mais importante do que o que se diz, é o silêncio que se faz, são as palavras apenas pensadas, as frases não ditas. Essas sim têm a ver com a nossa verdadeira opinião sobre tudo. A gente é o que é, em nossas formas mais cruas e verdadeiras, só quando a gente se cala.

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O show da Flora que você não viu

– esse é um blog de ficção, mas é sempre bom falar um pouquinho das coisas boas da vida real –

“Máximo respeito, ahhhh gente, o que que é isso? Pode descer todo mundo!” foram as primeiras palavras da Flora, no sábado último, quando entrou no palco do Sesc Santo André. Esse começo provava que a coisa ia ser boa, e você vai entender porque.

Fui com a Ju, minha namorada, e estava sem nenhuma expectativa, nem pra boa, nem pra ruim. Fazia muito tempo que não ouvia as músicas dela, não fiz aquele esquenta pré-show, quando você fica ouvindo todos os sons do artista e chega afinado na hora da apresentação. Só fui, e fui porque eu sabia que ia ser bom, porque não ia estar no meio da muvuca da Virada Cultural, porque era perto de casa, porque era barato (justo), e porque era rap feminino, que pelamordedeus, está representando bem mais que os cuecas da nova geração.

O show foi no teatro e não no espaço de apresentações, onde geralmente rolam as bandas. Quando compramos o ingresso tínhamos em mãos duas cadeiras na fileira J e assim que sentamos, meio longe do palco, comentei que achava surreal estar num show de rap com cadeira numerada, todo mundo sentado e num teatro fechado. Se tratando de Flora Matos, pior ainda, porque quem conhece sabe, a mina não para um segundo. Ela pula, leva os beats no “passinho do black”, tira a blusa, bota a blusa de volta, da o mic pra galera, chama a platéia pra cantar e, de repente, toda essa energia não combinava com o teatro comportadinho onde estávamos.

Apagaram as luzes, Dj Naomi, responsável pelas bases da moça, apareceu no palco com um camisetão amarelo escrito “SNAP IS BACK” e quem sabe quem foi o “SNAP!” sabe que isso é coisa séria. Olhei pra cena e pensei “essa porra vai ser boa!” e no minuto seguinte a responsável por levar aquela galera até ali, numa noite de sábado meio chuvosa, ficou indignada com a compostura refinada da platéia. Mandou todo mundo descer pra boca do palco, ficar de pé, ficar confortável e aí sim, em instantes, comigo e com a Ju já de pé, longe da nossa cadeira comprada, o show de “OperaRap” comportadinho virou o “Show da Flora” do jeito que era pra ser.

Som de qualidade, luzes de qualidade e um palco vazio (leia-se sem banca, sem uma galera invadindo, sem bicão oportunista e, infelizmente, sem Karol Souza e sua cabeleira. Mesmo assim, a MC de brasília com seus, no máximo, 1,60m de altura tomou conta da cena. Cantou uma atrás da outra, emendou duas, chamou a galera, cantou de olho no olho com uma fã afiada nas letras, deu abraço em outra ainda de cima do palco, arrancou assobios e elogios quando tirou o jaquetão preto pra exibir a barriga sarada e o top pequenininho – look que permaneceu na maior parte do show – e quando tudo parecia bom de mais, veio a hora de cantar as músicas novas.

Flora tinha preparado duas canções novas, uma delas, de última hora, e queria medir a reação do público com elas. Porém, o DJ, ainda mais empolgado com as novidades, resolveu soltar um terceiro beat, de uma música tão nova, mas tão nova, que não tem nem nome, nem letra completa ainda. E foi essa que ela cantou primeiro! Daí pra frente o show, que já estava bem intimista (no máximo 150 pessoas no teatro) começou a ficar parecendo “Flora Matos no quintal de casa”. Conversou com o público “E aí, que bom que vocês gostaram desse som novo, ainda não tá terminado”, errou a letra da música nova, pediu pra voltar, a galera aplaudiu a espontaneidade, depois viu que ainda sobrava tempo e quando Naomi soltou o começo de “Esperar o Sol”, que seria a última música do show, ela pediu pra segurar, ainda não era hora.

Diante do silêncio do improviso do cronograma a platéia começou a pedir músicas, faixas antigas, algumas que nem a própria autora lembrava a letra e, de repente, o público estava escolhendo as músicas que a cantora ia tocar. Pauladas como “Pai de Família” ou “Cada Flash um CEP”, que não estavam nos planos de Flora, levantaram os ânimos, as mãos e as vozes do público. Uma garota sentada no fundo, escondida na sombra do teatro apagado, mas com a voz bem nítida, começou a cantar alto, quase aos gritos, os versos da música mesmo antes de as batidas começarem e a artista, diante de uma demonstração clara de admiração, reconheceu que a noite e o momento estavam sendo mais especiais do que se esperava.

Em dado momento, a interação era tanta entre a artista e a platéia do desconcertante teatro, que ela mesma resolveu mandar um recado: “Olha, se tiver algum crítico aí na platéia, eu queria dizer que não é sempre assim não, estamos fazendo isso aqui porque dá tempo. É bom avisar se não depois o cara escreve no jornal ‘O show da mina é uma zona!’ e não é bem isso”, e o público gargalhou confortável. Estávamos mesmo no quintal da casa da Flora, a MC que quebrou a formalidade duas vezes: derrubando as estruturas de um teatro comportadinho e derrubando a barreira invisível, porém muito sólida, entre público e artista.

Esse é o tipo de show que não se vê todo dia. E provavelmente, esse show da Flora você não viu…

se você a conhece, mostra esse texto, fazendo o favor. Agradecido =]

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É impossível ser perfeito

É difícil pra mim, porque se tem duas coisas com as quais eu nunca lidei bem, essas coisas são a perfeição e a eternidade. Ficava difícil, desde criança, aceitar que alguma coisa poderia ser para sempre, imutável, sempre ali, existindo, sendo, fazendo seja lá o que for. A palavra “sempre” é tão abstrata que a gente nem percebe o quanto usa, e usa além da conta. Eu lembro que desde moleque eu ouvia aquela música da Cássia Eller com o Nando Reis, “Relicário”, que eu sempre gostei, me lembra minha mãe e tudo mais. Mas tem uma parte em que se diz “eu trocaria a eternidade por esta noite” e puts, canto com um certo receio, como se estivesse engolindo seco. Não dá, ninguém troca a eternidade por uma coisa só, até porque, a eternidade é inédita pra todo mundo.

Mas tudo bem, porque esse conceito de eternidade fica para outro dia, outro bar. O problema é que o conceito da perfeição, esse sim, não me abandona. Durante muitas fases da minha vida me peguei assustado, ou decepcionado, me perguntando porque é que eu não acertei. A gente acerta a maioria das vezes, é um fato, mas ficam na memória só os fracassos. E eu pensava neles o tempo todo. Hoje em dia a cobrança deu uma mudada. Até porque, quando se é moleque, você tem que comparecer às reuniões de família, estudar bonitinho, ir bem nas provas, não repetir de ano e, no geral, você é perfeito. Mas nem isso eu consegui porque, apesar de nunca ter repetido, ia mal pra cacete nas matérias de exatas e passava na base da macumba, mandinga, simpatia, promessa e tudo quanto é coisa divina. Minha 8ª série foi, de fevereiro a dezembro, na base da crendice e da fé no além, porque olha, só por Deus mesmo!

Depois você cresce um tanto e aí se torna quase impossível ser perfeito. Porque você tem que ser responsável, mas ter hábitos de quando você era criança, como ficar sempre perto da família, coisa que ninguém faz muito bem. Depois espera-se que você não beba, enquanto você já tem um drink preferido, já sabe que vodca, cachaça e saquê são coisas bem diferentes e está vomitando todo fim de semana. Depois espera-se que você não se meta em confusão, enquanto você já decorou os jargões policiais de tanto tomar enquadro. No final espera-se que, já que está tudo perdido, que ao menos você não use drogas, enquanto você já sabe como é a viagem de maconha, de lança-perfume, de mescalina, de ecstasy, de LSD, de cocaína, de cogumelo, de lírio e de fita. Nenhum adolescente consegue ser perfeito.

Mas quando passa a fase das experimentações e dos exageros a gente dá uma acalmada, tenta arranjar um emprego legal, que nos dê algum dinheiro sem nos tirar muito da vida, arranja alguém pra dividir o tempo, namora, namora muito, fica junto pra caralho, depois decide que está sério e aí vira um relacionamento, que pode ser namoro mesmo, ou noivado, ou casamento, ou só morar junto, que é o casamento sem a parte chata e cara. Então é hora de você ser perfeito novamente, e você, assim como nas outras fases da vida, vai falhar. Acredite, você vai falhar!

Você vai falhar porque às vezes é bom cuidar só de si mesmo, porque você vai ter ideias que não podem ser realizadas a curto prazo porque agora você tem responsabilidades a dois, porque você vai querer iniciar projetos que precisam ser feitos durante uma intensa imersão de solidão e, dali pra frente, você não vai mais ficar sozinho, ou é o que se espera. Você vai falhar porque vai falar o que quer, porque tem horas que os filtros que mantém a política da boa vizinhança vão falhar também e você vai ter opiniões racistas, atitudes preconceituosas, pensamentos inapropriados e isso tudo vai culminar em palavras e ações que vão te foder. Você não vai mais ser o filho perfeito, nem o amigo perfeito, nem o namorado perfeito, nem você mesmo vai se achar tão bom quanto costumava ser. Vai duvidar das suas certezas, vai querer pensar sobre porque é que é tão difícil agradar, porque é que as coisas estão sempre do lado oposto ao que você escolheu e, por fim, vai se perguntar porque é tão difícil acertar sempre. Você, você, você, você, você, você e de repente vai parecer que não tem mais ninguém no mundo.

Depois vai ficar claro que a autocrítica mata o ser humano à partir do momento em que ele deixa de enxergar os erros dos outros e passa a ver só os próprios. Ninguém é perfeito, as pessoas não te agradam o tempo todo, suas expectativas também são frustradas diversas vezes, você também esperava mais do seu trabalho, assim como seu chefe esperava mais de você. Seus familiares foram tão ausentes quanto você foi, seus amigos disseram, fizeram e pensaram tantas merdas e traições quanto você, seu parceiro também te magoou, também disse coisas que você não gostou, também decepcionou, frustrou, não atendeu às suas expectativas e, mesmo assim, a vida seguiu em frente. Então relaxa, aceita, fuma um cigarro, mesmo que você não seja um fumante, ou, se preferir, troque por um porre de pinga pura, tomado num copo de café, e depois se levante contra o mundo.

Eles não são perfeitos, cara, nunca foram, são péssimos, tão ruins quanto o resto de todo mundo. Você não precisa se preocupar, é impossível ser perfeito… eu prometo!

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Muda

Ela já não vinha em busca de nada. Antes ainda se preocupava em dar satisfação, inventava histórias, fazia de conta que tinha algo para mostrar, trazia desenhos de rostos muito bem detalhados, de cenas urbanas na chuva e eu sempre dizia que ela deveria trabalhar com isso. Mas ela não me ouvia, não queria nem saber. Depois de cinco minutos aqui dentro, já estava sentada no sofá, com a blusa longe, me olhando com a convicção de quem hipnotiza pelos olhos. Só que depois ela desencanou do teatro e eu passei a abrir a porta com ela já me beijando, sem nem ter tempo de ter certeza de que era ela mesmo.

Não sei se era muda, ou se simplesmente não queria conversar. A verdade é que não falar, às vezes, é a melhor maneira de resolver as coisas. E ela não falava comigo, mas tinha a risada mais sincera da cidade, com a boca bem aberta, os lábios carnudos ficavam finos, esticados, e era possível ver o fundo da língua. Ria com a alma, de um jeito que ninguém pode dizer que era fingimento ou exagero. Eu não sabia como lidar, porque quando ela aparecia eu tinha de estar totalmente à disposição. Se eu dissesse que tinha de ir embora, ela ficaria triste. Se eu mandasse que parasse, ela poderia me entender errado, então eu deixava rolar…

E rolava! Ela entrava me beijando forte, empurrando minha cabeça para trás. Depois me sorria, e fazia alguma coisa de que gostava. Geralmente ia até a janela ver a vista nublada, até porque em dias de Sol ela não aparecia. Eu abria o conhaque, porque ela não tomava outra coisa, além de água. A gente bebia em copos de uísque, vendo as coisas longe, e ela apontava o que queria me mostrar. Eu me sentia um velho sendo seduzido por uma menina, mesmo que nossas idades não tivessem mais do que cinco anos de distância. Ela parecia viva e eu completamente apagado, então tudo era novo com ela por perto.

Depois o conhaque fazia efeito, ela vinha com tudo para cima de mim e eu só reagia à altura. A gente fazia aqueles sexos de filme de romance, sabe? Em cima das coisas, na mesa, no batente da janela, na passagem da sala para o quarto, e ela tinha um corpo em forma de perfeição. Sempre aparecia com jaquetas enormes, roupas masculinas e calças largas, o cabelo bagunçado, sem maquiagem e sem estilo nenhum, mas por baixo de toda a poluição visual era quase um anjo, muito loira, muito branca, muito lisa e muito fresca, quase gelada, e não esquentava nunca.

Mesmo sem falar, colocava verdade e sentimento em cada som que emitia, e isso ficava mais claro quando a gente transava. Não que gritasse, nem que exagerasse, mas era, de longe, a moça mais barulhenta com quem eu já fiquei em toda a minha vida. Vinha de dentro, sons, gemidos e urros, que seriam impossíveis de se reproduzir. Às vezes eu pensava que, mais dia menos dia, ela se abriria ao meio e um outro ser sairia de dentro, mostrando a verdade de quem ela era. Mas isso, creio que por pura sorte, nunca aconteceu.

Era sempre a mesma menina, a mesma adolescente com cheiro de sabonete e fumaça de madeira queimada, que entrava desesperada para me contar, sem dizer nada, tudo o que a vida estava lhe aprontando. Depois me pedia colo, depois me pedia amor, depois me pedia sexo, depois me pedia para esquecer tudo e fingir que ela ainda estava vestida, que os peitos eu nunca tinha tocado, que a bunda eu nunca tinha visto, que ainda estava completamente imaculada e secreta. Acho que vinha para mostrar-se para mim, só para ver minha reação, para saber que eu ainda a desejava em meio aos muitos sentimentos que não tinham definição.

Um dia, enquanto se vestia ela me olhou estranho, atravessado, como quem percebe um gesto incômodo pelo canto do olho. A gente tinha acabado de transar no chão da sala e ela, grande, com seus quase um metro e oitenta, cheia de músculos fortes, de bundas, peitos e coxas firmes e jovens, tinha ficado abraçada a mim, agarrada com força, dividindo toda sua frieza corporal com o meu calor. Acho que foi naquele dia que eu tive certeza de que a amava, e foi a última vez que ela veio me ver.

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As coisas que pulsam

(esse texto é um exercício fantasiado de texto, ok?)

Em pé, descalça com os pés no chão de madeira, o horizonte das luzes no fundo escuro do céu é o limite. Os cabelos muitos pretos, muito compridos e vivos como cobras, sobrevoam os ombros, as costas e vão para trás a cada nova rajada de vento que entra pela janela. Ela ali, procurando com os olhos uma das luzinhas que faça alguma diferença. Mas não faz. São todas iguais. Sempre iguais. Assim como o vento, os cabelos e os cigarros. E fuma, para ter certeza de que este é exatamente idêntico ao anterior.

É o vigésimo nono, alto pra caralho e, por isso, olhar para o horizonte é um exercício de caça constante. Não se vê a forma das coisas exatamente quando se está nessa altura. Então são só luzes se movendo, construindo um cenário estático tão dinâmico que fica difícil de descrever. Afinal, você nunca percebeu que as luzes dos postes pulsam como as estrelas no céu? Deveria ter percebido isso há alguns anos, no mínimo. Quando você nasceu a iluminação de rua já pulsava firme, amarela, em lâmpadas de mercúrio.

As coisas pulsam para se mostrarem vivas, porque o morto não pulsa, porque não respira, porque não sangra, porque nada é. E se é, só pode ser morto mesmo. A ponta alaranjada do cigarro, que a gente estupidamente chama de brasa, mas não é, pulsa porque, vivo que é, o tabagismo precisa sugar a vida de quem o fuma. As estrelas, clássicas, pulsam porque vivem, simples assim. O coração pulsa porque quer nos manter vivos e os pulmões pulsam porque quer nos manter fumando. Vamos nessa linha de raciocínio e fica difícil aceitar que as luzes da cidade não pulsam. Pulsam porque querem nos cegar, se fosse para ver, de verdade, viveríamos no escuro, com as pupilas dilatadas, vendo os contornos granulados de tudo e todos.

Mas não. Era só uma janela na altura das coxas, num prédio bem alto e com mobílias antigas, com um corpo seco, um rosto quase feio de tão magro, e uma camiseta parecida com uma camisola, sobre um corpo que não vestia mais nada, nem perfume, por baixo. Era um cômodo vazio, só com janelas, paredes e chão, sem móveis nem lâmpada, nem quadros nem outra serventia além da que lhe cabia: ter a melhor vista da cidade. No canto, porém, tinha um cara, um outro rapaz muito magro, tão magro quanto a própria magreza pode ser. Ele fumava com o cigarro no canto da boca e dedilhava um violão com tanta delicadeza que os sons e as notas musicas tinham de se atirar, sozinhas, para fora do instrumento, em direção ao além, pois ele não parecia querer propagar sua música para ninguém.

E a cena era essa, com ela peladássa, com os bicos dos peitos quase rasgando a camiseta(sola), os cabelos malucos voando, ondulados, sem parar por todo o cômodo, com ele sentado no canto, tocando para si mesmo, ouvindo notas que ninguém mais ouvia, e tudo pulsando. O cigarro de ambos, o coração de ambos, o pulmão de ambos, a cidade de ambos, as estrelas de ambos, a vida de ambos, até que chegou a hora de parar. E desligaram a chave, apertaram o botão vermelho, digitaram o código de segurança, ou qualquer outra coisa apocalíptica, e tudo se apagou. A Lua tava com sono, foi dormir cedo, as estrelas foram embora também, os cigarros queimaram até o filtro e a cidade ficou sem energia.

Foi nessa escuridão que tanto ele, quanto ela, perceberam, pela primeira vez, que não estavam sozinhos ali. É que as vezes a gente vê tanta coisa, a vida e as luzes pulsam tanto, que a gente fica cego para o que realmente importa e está perto, fisicamente falando. Foi desse jeito, e por isso, que acabou a cena toda.

Fim, um beijo pra você, leitor(a)!

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