Tinha um navio que levava as pessoas pro lado de lá, mas ninguém podia comprar passagens para ele. Era preciso ser sorteado. E mesmo que muitos dissessem que eram armados, os sorteios eram sempre aleatórios e baseados apenas nas infinitas probabilidades. Era o maior navio do mundo, ficava há um dia de barco da costa continental. Era grande demais para se aproximar dos portos, então ficava boiando nas águas profundas esperando os novos passageiros. Eu e você poderíamos estar lá.
A pessoa era sorteada e avisada imediatamente por alguém da Cia. Marítima Do Lado De Lá. Vinha, sempre, uma mulher, vestida de marinheira antiga, tipo aquelas pin-ups dos anos de guerra americana. Ela aparecia sorridente, entregava a passagem e você deveria largar tudo e ir. Não havia tempo para avisar familiares, amigos, chefes, ninguém. Era hora de viajar! E você e eu iríamos, se fossemos chamados. As pessoas que recebiam a visita da marinheira eram encaminhadas para um transporte, que podia ser um ônibus, aqui no Brasil, ou um rickshaw em países orientais. Não importa, o que importa é que todos eram transportados até o porto.
Lá eram todos colocados em galpões de estocagem. Milhares e milhares de pessoas vestidas como foram encontradas pela marinheira, alguns até mesmo pelados, enfileirados e prensados para o espaço render. Depois que chegavam todos, o que às vezes podia demorar dias, as portas se abriam. A multidão era reorganizada e centenas de barcos menores eram lotados com essas pessoas. Esses barcos iam saindo em direção ao horizonte, cortando as ondas no sentido perpendicular às suas extensões, balançavam horrores e alguns passageiros caiam na água. Uns eram atropelados, algumas raras vezes conseguiam nadar até a costa e voltar às suas vidas normais ou, como era mais comum, eram apanhados pelos “pescadores” dos barcos que vinham depois.
Pescadores eram homens que ficava com metade do corpo para fora do barco, presos por amarras ao casco, e seguravam cordas e redes como as de laçar bois e caçar cachorros do mato. Eles resgatavam as pessoas e as puxavam para dentro de seus barcos. Pescadores competentes podiam ganhar até dez mil libras esterlinas por pessoa resgatada. Não importava o país de onde estavam saindo, os pescadores eram sempre os mesmos e o pagamento sempre era promovido pela coroa britânica, coisa que ninguém explica muito bem como acontece. Sabia-se apenas que esses homens eram muito ricos, muito velhos e jamais largavam o mar.
Depois de cruzar um bom pedaço do oceano, anoitecia, todos dormiam e acordavam com a luz do dia nascendo e, no horizonte, bem à frente, podiam ver o enorme casco dourado do navio. “Nyumba-Kaya” era o nome da embarcação. Era maior que tudo já visto no mar. Podia ser mais alto que a maioria das plataformas de petróleo e, com certeza, era o maior corpo em movimento de todos os oceanos da Terra. Por dentro, dizem, é todo branco, e por fora, com seu casco de ouro quente e brilhante, não havia marcas de soldas, rebites ou parafusos. Era como se fosse uma única peça concebida de uma vez só.
Quando chegavam todos os barcos ao redor do navio o silêncio se instalava. Os pescadores e comandantes das embarcações menores se recolhiam para dentro de seus cascos, fechavam as portas e os sorteados ficavam esperando serem chamados. Então o navio tocava uma buzina muito grave, quase como o som do silencio. Ao mesmo tempo, por suas gigantescas chaminés expelia uma densa e intensa fumaça vermelha, como se fosse sangue em forma de vapor. O sol intensificava o reflexo do casco, todos ficavam maravilhados com o brilho amarelado do navio, olhavam fixamente e iam ficando cegos, queimando as retinas, fritando os olhos enquanto ensurdeciam com a vibração grave demais do toque de partida.
Tudo ficava branco, silencioso e imóvel por alguns segundos e depois estava tudo bem. Restavam apenas incontáveis barcos vazios ao redor de um espaço oco no mar, há muitas horas de distância da costa e nada mais ao redor. Os marinheiros e pescadores saiam, olhavam-se, davam gritos e apitavam suas buzinas comemorando mais uma entrega bem sucedida e, depois de realizarem um banquete de comemoração, rumavam para outro país, outro continente, outro lugar qualquer, onde novos sorteados teriam o privilégio de partir para o lado de lá. Um dia seremos eu e você.