Naquela noite não conversamos muito. Era estranha a sensação de falar com alguém que você conhece, mas que não faz a menor ideia de quem você é. Mesmo sem falar, lá de longe, dá última cama do quarto, ela conseguia a minha atenção. Ignorando completamente a minha presença, trocou de roupa sem pudores ou dúvidas. Tirou as botas, a jaqueta preta, depois os brincos e o colar, depois o relógio, depois a outra peça de roupa que estava por baixo, depois o cinto, a calça apertada, que deu mais trabalho do que o resto, e vestindo quase nada se agachou próxima à mala para achar peças que, depois, reconheci ser um pijama. Adormeci antes de apagarem as luzes.
Nessa noite não sonhei. Mergulhei num sono preto e pesado, a ponto de acordar no dia seguinte sem nem lembrar da existência de Calípso. Fiquei um tempo acordado olhando o estrado da cama de cima, vazia e arrumada. Pensei sobre a cidade, sobre a viagem, sobre voltar para casa e sobre como era difícil ouvir e entender o alemão das ruas. De repente entendi, sem qualquer dificuldade, um “bom dia” feminino vindo de lá de longe. Animado, cortes e interessado. Toda a paixão desaparecida que o sonho pesado me proporcionara agora escorria descarada pelos meus olhos, boca e poros. Não me lembro se respondi, mas me apressei em sentar na cama e ela, encostada na parede do lado de lá, me olhava e sorria, como quem espera uma reação qualquer.
“Você tá linda”, foi a primeira coisa que eu disse. Não era bem o planejado, até porque nem tinha um plano, mas foi o que deu pra dizer, o que saiu. Ela sorriu um riso curto, daqueles que significam mais do que aparentam. Levantou-se da cama e caminhou descalça sem me olhar. Quando passou pela porta disse, em inglês, que ia escovar os dentes. Eu ainda fiquei uns segundos ali, setado na borda da cama, olhando para o quarto vazio paralisado, pensando porque é que não disse “bom dia” e nada mais. De repente reconheço o som da escova de dente e a vejo reentrar no cômodo. Tem um escovar frenético, ritmado, daqueles que parecem que vão voar os dentes. Sentou-se na outra cama, de frente para mim, com um batom de espuma branca ao redor da boca, o rosto amassado, os cabelos loiros presos para cima e ficou me olhando. Depois de algum tempo, “tô linda mesmo?” perguntou em tom sério e dessa vez quem sorriu foi eu.
Era linda de qualquer maneira, mesmo assim, sem maquiagem, nem modas, nem defesas. Tinha um rosto claro, limpo, como se fosse dourada, amarela, loira por inteiro ou algo assim. Não conseguia disfarçar meu enorme interesse em tentar ver por dentro da gola larga do pijama como era seu corpo, o que tinha por dentro, mas não conseguia. Depois me disse com a escova ainda dentro da boca que eu deveria ficar ali, que voltaria logo, e quando levantou-se percebi que seus peitos se desenhavam com perfeição por baixo do pano. Sem sutiã, sem gravidade, só perfeição e genética. Quando voltou estava animada, falante, me contando coisas, conversando, apontando os peitos para todas as direções e me chamando para ir com ela. “Eu vou!”, não sei onde, nem quando, nem para quê. Mas eu vou.
Saí para escovar os dentes e lavar a cara. No espelho meu rosto era um misto de esperança com derrota plena. Voltei em tempo recorde e ela já estava com outra roupa. Saímos em busca de um café da manhã e não sei se por provocação, ou por instinto, mas ela se agarrou no meu braço e aos olhos de quem passava eramos um casal. Eu queria ser um casal com Calípso, o homem de Calípso, fazer parte da vida dela. Ao menos fazia parte daquele dia, fazia ela rir, fazia companhia a ela e a fazia pensar que, no fundo, talvez, as pessoas valem a pena. Passamos o dia, a tarde e o comecinho da noite completamente juntos, fisicamente juntos, segurando mãos, abraçados, encostados e eu não tinha a menor dúvida de que estava apaixonado.
Bebemos um monte de cerveja quente, ficamos breacos e inconsequentes e, como se fosse um desejo mútuo que nasce em corpos separados, nos beijamos. Mas um beijo com cara de convite, com cara de “era uma vez…”, começo de história. No táxi de volta para o albergue ela me parecia o corpo mais confortável e quente que eu poderia encontrar. Puxava meus cabelos, lambia meu pescoço, errava minha boca e tacava a língua no meu queixo, no meu rosto e a gente se lambia rindo, como se estar com tesão um pelo outro fosse mais brincadeira do que coisa séria. Quando chegamos no quarto já não tinha mais segredo e ela arrancou a blusa de uma vez, ajoelhou-se em cima de mim puxando minha camiseta, mas, de repente parou. Me olhou, sorriu, se abaixou gentil até colar o corpo no meu e sussurrou no meu ouvido. “Preciso te contar um segredo… eu sou duas!” e gargalhamos juntos, para voltarmos aos beijos loucos, à alucinação de estar junto e permanecer assim.
Enquanto transávamos eu não pensava em nada além do que sentia e via. Os peitos, os mesmos de antes, lindos, pequenos e firmes, agarrados ao corpo sem se abalarem com ritmo ou intensidade. Os cabelos, agora menos loiros, mais escuros, cobrindo um sorriso enorme de uma boca quase louca. Não sei dizer se durou dez minutos, dez horas, dez vidas, mas parecia não acabar nunca e eu dava graças a Deus por aquilo. No silêncio, depois, agarrado a ela num encaixe perfeito, perguntei, agora em tom de seriedade, sobre o que tinha me confidenciado antes de tudo. “Você é duas mesmo?”, perguntei, como se “ser dois” fosse uma coisa comum e banal no nosso mundo. “Sou!”, respondeu, tirando os pés da cama e indo dormir sozinha, sorridente, pelada, úmida e quente. “Foi bom ter vocês…” eu disse, antes de me virar e dormir.