– levei seis anos para voltar a escrever sobre essa personagem –
Fazia alguns anos que a gente não se via. E digo “alguns” porque não consegui contar exatamente, mas posso sugerir uns sete, oito, mais ou menos. Da última vez que eu a vi ela estava beijando uma garota negra careca no canto da parede de uma festa em um apartamento na Augusta enquanto eu tentava me livrar daquele labirinto de gente bêbada e estranha, daquela música perturbadora e daquela luz roxa incansável. Fomos parar lá depois de uma semana cheia de problemas, pra ser discreto, com a polícia, com gente pior que a polícia, com amigos de infância e com gente que não tinha rosto. Eu jurei que nunca mais a procuraria e guardei apenas a imagem daqueles cabelos loiros platinados, quase brancos, curtos além da conta, lésbicos declarados, se agarrando com aquela moça que nem cabelos tinha. Nunca mais a gente se falou.
Mas como a vida não se contenta em surpreender, ela gosta de agir, meu celular acendeu numa noite de quinta-feira, agitado, como se fosse uma mensagem mais importante que as outras. Já na cama, já descansando, já calmo, já morto, li o seguinte, sem rodeio e cerimônias: “Voltei, me encontra amanhã às onze da noite naquela lanchonete dos chineses, descendo a Augusta – Centro, onde a gente costumava ficar. Beijo na bunda, gato!” Não quis acreditar, jurei ser engano e o número desconhecido me parecia mais piada do que realidade. Digitei uma mensagem despretensiosa perguntando quem tinha sido o remetente daquilo e antes de poder voltar a relaxar a tela se iluminou novamente, parando meu coração: “DRIVER!”, assim, preto, no fundo cinza claro do telefone, brilhando no LCD flutuando na escuridão. Seis letras e um ponto de exclamação. Sete símbolos, sete vidas, um problema só. Em forma de mulher.
Não consegui dormir direito. Fiquei lembrando das aventuras que a gente viveu, amizade incontestável, das vezes incontáveis que eu pensei, com ar de conformismo, que iria morrer, e quando apagava, vinha no sonho, como cenas de cortes de trailers de filmes de ação, o som dos pneus do carro, a lataria cinza escura reluzente, a boca de um batom muito vermelho e a sensação incômoda e intimidadora do vento frio cortando a pele entrando pela janela escancarada. Era como droga a companhia daquela menina. Quer dizer, na época era uma menina, fazendo tudo errado, retorcendo o mundo à sua maneira e me carregando junto, me matando de medo e me enchendo de orgulho. Eu amava continuar vivo depois de tudo e poder olhar pro lado e vê-la sorrindo para mim, segurando o volante excitada, eufórica, feliz por ter com quem dividir o momento.
A noite passou, a sexta-feira se arrastou tensa e no horário combinado eu estava lá. A luz branca fraca deixa aquele bar com cara de açougue mal higienizado e o fato de os chineses continuarem não manjando nada de português dá um toque de submundo àquela merda. Eu sempre odiei, mas ela gostava de ir lá porque “ninguém enche o saco e não tem fila pra entrar”. Deu quase meia-noite e eu estava sozinho, já na segunda garrafa grande de Brahma, quando ela entrou. Na minha cabeça tudo parou, foi como tomar um choque e ir bater na porta do céu, ver a vida acontecendo fora do corpo e depois voltar, ressuscitado por um milagre. Agora era uma mulher maravilhosa, com peitos que não estavam lá anos atrás, com cabelo suficiente para encher um coque no alto da cabeça e a mesma boca vermelha.
Entrou sorrindo com muitos dentes e me abraçou com força, sem dizer nada, num impacto fulminante de chocar de gentes. Ficamos algum tempo enrolados, sem falar, de olhos fechados fazendo força com os braços e sentindo o corpo falar todas as palavras que a gente não disse. Foi um momento tão feliz que sinto alegria em lembrar como se ainda estivesse ali, abraçando. Depois que nos soltamos ela sorriu para mim linda, nitidamente contente em me ver, passou a mão no meu rosto sentindo a minha barba, que também não estava na minha cara quando a gente se vivia. Sim, “se vivia”, porque estar com ela era como viver outra vida, ou como estar na minha vida e na dela ao mesmo tempo. “Vamos embora daqui, a gente precisa muito conversar!” e foi me puxando pela mão, só a tempo de eu jogar uma nota de R$20 no balcão e deixar o troco pra China.
O motivo pelo qual seu apelido era Driver vinha, obviamente, de seu notável talento ao volante e, para conversar com ela, conversar de verdade, ouvir seus segredos mais profundos e suas verdades incontestáveis, era preciso estar sentado dentro do carro, aquele cinza, caro, de pneus barulhentos e gastos do meu sonho. Eu lembrava tudo. Ele ficava guardado na garagem do Maksoud Plaza, ali do lado, onde ela morava. Como é que uma garota de 24 anos fazia pra morar em um dos hotéis mais caros de São Paulo é assunto pra outro dia, mas o fato era esse: carro no hotel, a gente caminhava até lá e depois nada mais era garantido, nem a própria vida. Mas logo que começamos a andar percebi que o caminho estava diferente. Não conversamos durante um bom tempo, subindo a Augusta de mãos dadas, como se fossemos um casal, indo em direção à Paulista.
Estávamos longe do hotel, longe do carro, longe do caminho de sempre e eu sabia que não teríamos uma conversa certa até estarmos os dois setados atrás de um motor. Quando paramos na calçada esperando para atravessar a principal avenida da cidade, me remoendo em dúvidas, perguntei: “a gente não vai pro Maksoud pegar o carro?” e ela sorriu agradecida por perceber que eu lembrava dos velhos tempos, antes de me surpreender: “mudei pro Hotel Tivoli… é mais discreto”, me disse, puxando meu braço para atravessarmos a faixa. Muitos anos mudam muitas coisas, o endereço e o preço das coisas, por exemplo. Foi aí que um estalo me ocorreu. Só então percebi que era ingenuidade minha continuar pensando no carro que ela dirigia quando tinha 17 anos. Com certeza, na garagem nos guardava outra coisa.
Entramos pela recepção e um rapaz de roupa cinza e chapéu cumprimentou-a pelo nome, que eu já havia esquecido. “Boa noite, Dona Sabrina”, e ela retribuiu. Passamos pelo saguão largo do hotel, ao fundo, no bar, um jazz ao piano embalava a noite de gente velha e endinheirada. O elevador bilíngue nos levou até o subsolo e quando a porta se abriu ela voltou a sorrir. “Duvido que você adivinha qual é o meu carro!”, disparou, confirmando minha suspeita de que o modelo antigo já tinha virado história. No estacionamento não havia muito carros, dez, para ser exato. Os com cara de família eu descartei primeiro e fui narrando meus palpites em voz alta, enquanto caminhávamos pela garagem. “Não é o nem o XC 90 nem o V60, porque você odeia Volvo. Não é a Cayenne porque você gosta de esportivos. Também não é o Range Rover, pelo mesmo motivo”, e segui narrando.
Dos outros seis carros, dois eram comuns, um Omega e um Accord, que não combinavam com a cara dela, em cores muito idosas e sem personalidade. Outros dois eram do próprio hotel, adesivados com símbolos da Haganá. No fundo, nas últimas vagas, um Mustang Cobra Jet branco e um Lancer Evo X vermelho sangue. Poderia ser qualquer um dos dois, ambos eram perfeitos para ela. “Puts, não sei, pode ser qualquer um dos dois. Qual é o seu?” e ela, com a mesma boca vermelha cheia de dentes respondeu com desdém: “eu dirijo os dois!” e eu ri, porque soava quase surreal. As luzes do Mustang se acenderam, ele era o escolhido da noite. Entramos no carro e o cheiro de couro invadiu meu olfato. O ronco do motor na partida ecoou por toda a garagem e antes de sair da vaga ela confirmou que hábitos não mudam: o rádio tinha que estar ligado.
O telefone cravado em um dispositivo no console exibia a lista de músicas da noite e eu já sabia que as eletrônicas dominavam em larga maioria. Mas quando o primeiro som surgiu, a primeira nota musical era um baixo, com um chocalho e assobios seguidos de uma guitarra tímida e um bumbo calmo. “Isso é Black Keys? Cadê os ‘psy-trance’ que você ouvia?” e ela acelerou fazendo minha cabeça bater contra o encosto do banco. “Agora eu ouço rock também, e até canto!”, e gargalhou, avançando na direção da saída. Quando os pneus tocaram o asfalto da rua ela gritou o primeiro verso da música misturando a voz ao tradicional som dos pneus queimando borracha. “I wanted loooove” e saiu a toda, ignorando os carros que vinham, o farol amarelo, as pessoas que atravessavam e o mundo ao redor.
“Tighten Up” tocando no carro, o vento gelado ressecando a pele do rosto, uma loira platinada sentada no banco do motorista e uma vida inteira pra morrer. Ela tinha voltado e eu saberia muito em breve o motivo. “Depois dessa música a gente conversa”, ela disse. E eu esperei…