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Pós-festa

As paredes com marcas de mãos sujas, o chão grudento e encardido, mesmo nas partes onde havia carpete no lugar de piso. Os copos de plástico jogados pelo jardim e pela sacada, garrafas boiando na piscina e pedaços de papel impossíveis jogados por todos os cantos. Tinham rasgado a cortininha da janela da cozinha e uma das cadeiras estava só com três pernas. A quarta, pelo estado pontiagudo da madeira, tinha sido arrancada com violência. Na árvore, quase como uma cena de filme adolescente americano, uns dez rolos de papel higiênico se cruzavam e enrolavam nas folhas. Eu não fazia a menor ideia de como faria para limpar aquilo, nem de onde tinha saído tanto papel. Será que as pessoas levam rolos de papel nas bolsas e mochilas quando vão para alguma festa, só para o caso de ter uma árvore dando sopa por perto?

A sala estava fedendo a vinho azedo. O tapete estava manchado de amarelo na ponta e, pelo cheiro, estava mais para vômito do que para bebida. O sofá estava ligeiramente deslocado do eixo e uma porção de copos e garrafinhas de vidro ocupavam os móveis, a estante, o entorno da televisão e uma parte do chão. O lavabo de baixo tinha vômito pra todo lado. Alguém passou bastante dos limites e conseguiu vomitar próximo ao teto ao redor do batente da porta, pelo lado de dentro. Se não fosse minha casa eu daria parabéns pela façanha. A pia estava tomada por uma pasta cor de salmão, seca, fosca e fedorenta. A privada não estava muito diferente e o chão de piso branco parecia ter sido frequentado por alguém carregando um pincel de tinta preta pingando sem parar. Como as pessoas conseguem sujar tanto os sapatos em uma festa?

Subindo as escadas os pés disputavam espaços nos degraus com copos e garrafas. No topo havia um frasco de perfume vazio, aquilo me perturbou um pouco, mesmo sem saber o motivo. O corredor repetia o roteiro de garrafas, frascos, copos, latas, coisas que sujam, mãos pretas nas paredes e líquidos sem identidade absorvidos e espalhados por todos os lados. O quarto dos meus pais não abriu quando forcei a maçaneta: bom sinal. Achei que nem estando trancado ele seria poupado. O banheiro do corredor de cima estava um pouco melhor que o de baixo. Estava sujo, bagunçado e a porta de plástico duro do box estava com uma rachadura enorme, mas não fedia a vômito. A tampa da privada estava torta e o cesto de lixo estava povoado por uma montanha de papéis, além de umas três ou quatro camisinhas. Sexo no banheiro da festa, que original. Uma das camisinhas no lixo era vermelha, estava amarrada na boca e eu fiquei pensando: quem, hoje em dia, ainda se preocupa em dar o nó para a camisinha não vazar no lixo? E quem é que comprava camisinha com sabor? Afinal, ainda tinha gente que chupava os outros com camisinha?

No final do corredor meu quarto estava do jeito que eu deixei quando acordei. A cama meio bagunçada, as persianas fechadas desenhando listras perfeitas no chão e os objetos mais ou menos no lugar. Meu quarto se salvou da destruição em massa que o resto da casa enfrentou na noite anterior. Saiu quase ileso, na verdade. O jardim, com um pouco de música, um bom café da manhã e disposição eu conseguiria limpar em umas três horas. A cozinha, em um pouco menos de tempo. A sala e o banheiro, com dedicação, não levariam nem sequer uma hora. Recolher os copos e garrafas levaria uns trinta minutos, no máximo, e as tapeçarias e coisas quebradas eram facilmente laváveis na lavandeira da esquina ou trocáveis, sem grandes gastos. Eu conseguiria arrumar a casa inteira com uma dose extra de força de vontade, mas não fazia a menor ideia de onde eu ia tirar coragem de lavar o cheiro do seu perfume que ficou impregnado no meu travesseiro. Essa questão eu ainda não resolvi.

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Amores de festa de sábado à noite

Estava quente no quarto, era domingo, daqueles domingos que não têm absolutamente nada de especial, que o céu está azul e ensolarado, mas ninguém quer ir ao parque, nem tomar um sorvete, nem dar uma volta de bicicleta, nem nenhum clichê de domingo. Mais ou menos uma da tarde, por aí, uma cama de solteiro insuficiente para os dois, insuficiente até mesmo para um solteiro sozinho, e o calor visceral do ar, do sol e dos corpos semi-suados tentando dormir grudados naquele bafo sufocante.

Nenhum carinho, nenhum beijo de “bom dia meu amor”, nada. Não era amor, não era especial, não era nada demais. Ele passou por cima dela como se pulasse uma mureta, caminhou até o banheiro e por instinto fechou a porta à chave. O rosto no espelho, inchado, amassado, com olheiras e sem brilho. Água, muita água, água sem parar, um oceano de água doce da torneira para as mãos, das mãos para o rosto, do rosto para o espírito e do espírito para o ralo seco da pia. Escovou os dentes, olhou-se no espelho e gostou da nova cara: “bom dia!” disse, sorrindo para si e voltando para o quarto.

Ela estava acordada, com as costas oferecidas ao teto, os cabelos esparramados pelo travesseiro e vermelha. Gente de pele clara geralmente fica vermelha. Mesmo usando apenas calcinha, parecia estar tomada por um calor insolúvel e imutável. Sorriu para ele. Ele sorriu para ela e se beijaram comedidamente. Ele, com gosto de menta, ela, com gosto de guarda-chuva velho. É o mal de beijar pessoas recém acordadas. O encanto do “amanhecer ao teu lado” é aniquilado pelo cheio de podre da boca de quem bebeu, fumou, se drogou e dormiu logo em seguida. Ele tinha fumado, bebido, se drogado mais e dormido logo em seguida, mas acordou mais cedo e por isso não fedia mais. Nessas situações, dignidade é um sinônimo para gente limpa e saudável.

Ele se deitou sobre ela, com todo seu peso, com todos os seus ossos, músculos, pesos, pelos e poros. Passou a mão por baixo de seus ombros e agarrou com força os peitos dela, comprimidos contra o colchão, amassados como sua cara, como seus cabelos, como sua aparência toda. “Não, primeiro eu preciso tomar banho”, ela disse, e ele respeitou, a contra gosto, o senso de higiene mínima da moça. Balançando suas curvas suaves de mulher fora dos padrões de revista, segura e sensual, se jogou para dentro do banheiro como se fosse o seu próprio quarto. A cama de solteiro vazia e úmida, com o lençol todo amassado, vítima de uma noite de sono sem sexo, sem ações, sem emoção alguma. Drogados, bêbados e fodidos. Mortos. Deitados em uma cama, quase pelados, quase transando, quase gozando, mas só dormindo, recuperando vidas passadas em pesadelos péssimos.

Depois do banho ela saiu sem roupa. Já estava sem roupa antes, mas a ausência da calcinha dava um tom quase fraternal à cena. É estranho ver alguém pelado de cara, sem cerimônias, quando não foi você que tirou nenhuma das peças de roupa. Fica quase banal, nada sexy, nada erótico, só diário e simples. Mas ela foi na direção dele, meio seca, meio molhada, com os cabelos grudados na nuca, e durante alguns minutos se contentaram em apenas beijar o outro. Um beijo de verdade, sentindo o profundo gosto de pasta de dente, de boca quente com ar gelado, com ela acariciando os cabelos dele, com ele deslizando a mão pelos pontos molhados nas costas dela.

Daí, transaram um monte. Primeiro na cama, depois no chão, depois na sacada, depois no chuveiro de novo. Ele se cansou na segunda, ela foi quem forçou as outras duas. Homem quando não quer demora horas pra gozar e ela estava interessada nessa persistência, no martírio, naquela ardência que dá quando o sexo já passou do limite do saudável e normal, no quase sofrimento. Ela queria a câimbra, queria o suor abundante, a boca seca, a garganta arranhada dos gritos, dos urros, os dentes frios da boca ofegante e a pele toda vermelha, arranhada, estapeada, friccionada, gasta até o fim. Era já o fim da tarde, cinco, seis, sete horas. Céu escuro, fome aguda, bagunça instalada, desidratação suave. Eles deitaram mortos vivos de olho no teto sem dizerem mais nenhuma palavra. Coisa normal desses amores de festas de sábado à noite.

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A festa

Da rua já dava para ver a sala toda acesa, com as cortinas amareladas na luz da lâmpada quente e umas sombras zanzando, um pessoal segurando coisas e tudo mais. Festa em casa. Abri o portãozinho da rua, daqueles baixinhos que só servem de enfeite, porque qualquer criança de menos de 1 ano de idade já seria capaz de abrir ou pular por cima sem muita dificuldade. Abri a porta e a primeira coisa que vi foi o panetone de 5 kg na mesa da sala, com uma vela de macumba fincada bem no meio, quase como uma estaca, e um senhorzinho de uns 250 anos sentado logo atrás daquele conjunto bizarro, esperando momento de acenderem o pavio.

Todos me olharam com uma cara estranha, como se eu tivesse chegado bem no meio de alguma coisa muito importante, mas logo voltaram a se concentrar na mesa de docinhos, quitutes e o puta panetone gigante no centro. A vela era vermelha da metade para baixo, preta da metade para cima e eu, por pura falta de vocabulário, paciência e conhecimento, repeti para mim mesmo, mentalmente: “isso é uma vela de macumba enfiada num panetone de Itu”, e saí da sala. Não fazia a menor ideia de quem era aquele senhor muito muito muito velho, mas meu avô não era, esse já morreu.

Cheguei na cozinha e tive aquela estranha sensação de estar sendo confundido com alguém, ou de ser reconhecido por alguém que te “carregou no colo” e agora não pode acreditar que você já tem pelos na cara, debaixo do braço, no saco, e ganha dinheiro trabalhando em algum lugar honesto. Uma mulher de cabelos pretos cacheados, tipo permanente dos anos 80, bem gordinha, daquelas que, segundo o médico, deveriam pesar 50 kg, mas estão beirando os 90 kg, me abraçou bem forte. Tinha aqueles braços de moças polenteiras, que ficam com os bíceps parecendo rochas e os tríceps parecendo uma rede de descanso pendurada em pilastras próximas demais.

Reencontrar parentes que você não lembrava ou não sabia que tinha é sempre um momento esquisito. Era sexta-feira, eu tinha acabado de chegar do trabalho e, de repente, estava rolando um aniversário suspeito com um monte de parentes desconhecidos e eu pude fazer toda essa análise do cenário enquanto era apertado pela moça gordinha. Na boa, cadê a minha mãe nessa porra? A gorda disse que eu cresci, disse que eu estava bonito, disse que não me via há muito tempo e depois chamou o marido, que me deu um aperto de mão mais forte do que o necessário, balançou meu braço mais forte do que o necessário e me disse que tinha me carregado no colo, mas que eu não ia lembrar. O casal, ela muito gorda, ele quase um palito de tão magro, estavam nitidamente alcoolizados e as outras pessoas na cozinha me olhavam com certo ar de vergonha e constrangimento.

Eu estava varado. Entrei no trabalho às 14h da quinta-feira e saí às 19h da sexta. Não estava raciocinando bem, não entendia o evento e nem conhecia as pessoas. De repente percebi que no rádio tocava o CD novo do Lulu Santos, só com versões do Roberto e do Erasmo e, por um segundo, senti uma nostalgia mórbida entrar por dentro do meu nariz. A casa tinha cheiro de leite de rosas. Subi as escadas e ao tentar entrar no meu quarto a porta estava trancada. Bati grosseiramente com a lateral do punho fechada e ouvi duas vozes femininas dizendo que já estavam quase prontas. Ótimo, minha mãe deve ter dado meu quarto pra alguém se fantasiar de gente bonita. O quarto dela também estava trancado, mas eu não precisei ser muito inteligente ou bater na porta para sacar o que estava rolando. Sexo!

Eu conhecia o som das molas da cama da minha mãe, já tinha transado naquela cama inúmeras vezes durante as viagens dela e, definitivamente, alguém estava mandando ver. Torci para não ser ela, mas a voz era realmente diferente. O cara dizia coisas como “quem é o pai? Fala pra mim quem é o pai aqui?” e a mulher respondia com a voz falhada e muito aguda, “é vocêêêêêêêíííííííííííííííí” como uma chaleira com a água já fervida. Vish. Saí dali sem questionar muita coisa. Quando desci as escadas todo mundo estava cantando parabéns. Mas era uma versão gringa. Não sabia se estava ouvindo direito, mas parecia alguma coisa europeia, um parabéns em russo, ou polonês, ou húngaro, mas no ritmo do parabéns brasileiro. Estava realmente complicado para mim.

O vovô agora usava óculos de sol e batia palmas e eu previa que a mão dele cairia a qualquer momento, mas não aconteceu. Quando ele finalmente soprou a vela, ao invés de a chama apagar, fez-se uma labareda colossal dentro da sala, como aquelas dos malabaristas de fogo, que foi ovacionada com muitos assovios, palmas e gritos, seguidos de um coral que batia palmas ritmadas gritando “dra-gão, dra-gão, dra-gão” e eu já não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Cadê minha mãe nessa porra? Fui procurá-la no quintal do fundo e tinha uma galera um pouco mais velha que eu tomando cerveja e comendo frango, um frango assado, estranhamente equilibrado num prato sobre uma baqueta de madeira muito bamba. Eles comiam com a mão e o tempo todos as garrafas pareciam escorregar. Um rapaz com fiapos de frango preso na barba me perguntou, ainda de boca cheia: “quer frango, brother?” e eu apenas saí.

Atravessei a cozinha onde o casal gordinho bebia shots de álcool Zulu 46% num copo de requeijão, passei pela sala onde agora todos dançavam em casais as músicas românticas do Roberto Carlos na voz carioca do Lulu Santos, e cheguei de volta até a frente da casa, onde o silêncio da rua parecia quase um milagre. De repente vi minha mãe, do outro lado da rua, no portão, conversando com uma amiga. Ela estava na nossa casa o tempo todo, mas eu não.

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Bom era na nossa época!

A gente caminhava muito, o tempo todo, como se fosse obrigatório marcar o ponto de encontro em um local a quilômetros de distância de onde precisávamos ir. Mesmo longe, caminhávamos rápido, aproveitando o máximo da nossa juventude, dos músculos novos, dos ossos duros como pedras. Hoje, lembrando, tudo parece um nostálgico e cinematográfico slowmotion. Mas lá, na hora, era tudo muito efusivo, muito rápido.

As meninas com as batatas das pernas duras, subindo as ladeiras de sneakers e sapatilhas, com as polpas das bundas fugindo por baixo das saias e os cabelos tão leves, voando com o vento dos carros, o sopro da noite e o caminhar. Eram as criaturas mais encantadoras que eu conhecia. Muito lindas, muito lindas mesmo. Os rostos davam a sensação de que a vida era aquilo ali, ficar ao lado delas, estar com elas. Tinham perfumes com cheiro de tesão, cheiro de sacanagem pura, por diversão. A gente respirava o mesmo ar e nem os cigarros em riste nos dedos finos apagavam aqueles cheiros.

Os caras – me incluo nessa – sempre de calças jeans, todos usando Nike ou All Start nos pés, porque era pra usar, como uma regra implícita não discutível ou negociável. A gente caminhava com o peito cheio, as vezes com as mãos nos bolsos das jaquetas, como se fossemos perigosos, como se fossemos alguém. Ninguém nos via, eramos quase invisíveis perto daquelas meninas, mas para elas, brilhávamos como um Sol na meia-noite. Chamávamos atenção delas, elas chamavam nossa atenção e rindo muito, todos, juntos, falando alto e mostrando os dentes, a gente cortava a noite.

Não tinha copo algum. Afinal, quem carrega copos em uma travessia quase épica por cruzamentos, avenidas, semáforos quebrados e gente dirigindo com pressa? A razão da distribuição das bebidas era sempre de 1/3 do grupo. Se estávamos em seis, tinha duas garrafas, e o gargalo era nosso recipiente. Nunca latas. Nunca copos. Nunca misturas. Carregávamos o litro de vodca sem tampa para nos forçar a não deixar nada para trás. Não existia a opção de “guardar para depois”, porque o depois não fazia parte dos planos. Era sempre o agora, o já. A gente bebia demais.

Entrávamos por portas estreitas, com luzes coloridas, cada dia de uma cor, cada noite um corredor novo, cada noite uma aventura diferente. As festas nunca eram triviais, com gente comum em ambientes agradáveis. A gente tomou chuva, algumas vezes. Tomou tombo em outras. Tomamos choque em muitas. Era sempre uma aventura e sangrar um pouco fazia parte do pagamento para ser feliz. Eu não me drogava porque não dava tempo, já estava mais bêbado que um gambá antes mesmo da coisa começar a ferver, mas as meninas todas cheiravam. Os caras, alguns cheiravam, outros fumavam maconha, uns poucos tinham ácido. Era raro na época. Mas todo mundo bebia horrores. Ninguém era careta.

A gente dançava o que tivesse tocando, se apertava em diferentes combinações, as vezes transava, as vezes beijava, as vezes ficava só olhando. Ninguém tinha dono, ninguém sabia nada de monogamia, ninguém queria se prender. As meninas todas eram umas gostosas, a gente ficava maluco e elas sabiam disso. Os caras, uma porrada de cara meio magrelo, meio bolachudo, com as roupas com problemas de proporção e se sentindo homens. No fundo elas não sabiam o que estavam fazendo e a gente não sabia o que fazer com o resto. Mas a gente se divertia mesmo assim.

Depois de muito tempo, quando a noite já estava virando fim de madrugada, no meio do frio, a gente decidia que era hora de ir embora. “O ônibus volta a passar às 5h”, era frase religiosa para todo mundo. Ninguém tinha carro, ninguém tinha carta de motorista. Na verdade, nem isso, nem idade para tanto. A gente voltava abraçados aos pares, muito loucos, arremessando garrafas no meio das ruas vazias e silenciosas. Só pra ouvir o estalo do vidro no asfalto. Agora sim tínhamos copos, porque ninguém tinha vergonha de roubar das festas, das casas ou dos raros bares que a gente ia. “Copo foi feito para se levar do rolê pra casa, não o contrário”, dizíamos. Tocávamos campainhas quando havia casa, tocávamos interfones para acordar porteiros, tocávamos o terror à nossa maneira meio boba e infantil de viver.

Hoje o povo briga uns com os outros porque pegou o carro bêbado, porque não respondeu no WhatsApp, porque ficou olhando pra mina do outro cara. O pessoal se aperta dentro de roupinhas bonitas e se joga em filas com revista de segurança, cartão e comanda, consumação mínima, camarotes e listas VIP. Hoje o pessoal quer conseguir levar para o motel, quer comprar bebida cara e se sentir o rei do mundo segurando taça. Hoje o pessoal tem a Kesha, Lana Del Rey, Amy Winehouse e Rihanna, mas não presta atenção nas letras, não aprende nada sobre como a vida/festa/noite deve ser. Hoje a gente diz que se diverte, que fica muito louco, que passa dos limites, mas é tudo uma porção de merdas controladas e sem a menor graça. Bom mesmo era na nossa época, 17 anos de vida, quando a gente fazia tudo isso e ainda era quinta-feira.

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O circo no quarto

Por cima dos móveis da sala só copos, latas, garrafas e lixo. Lixo de festa, papéis estranhos, coisas amassadas, embalagens, e sujeira esparsa, acumulada, enfeiando a decoração. Cervejas, vodcas, combinados, vinhos, espumantes, frizantes, algumas solitárias garrafas d’água e uma ou duas latas de Coca-Cola. Da vermelha, com açúcar, pra misturar a vida, a noite, tudo num copo só e mandar para dentro. O tapete meio jogado no canto, o chão de madeira riscado de salto, de vidro quebrado, de pista de dança improvisada em festa sem controle.

No corredor pro quarto o aparador estava cheio de nada. Tudo que tinha em cima foi embora. Ou tiraram, ou caiu e se misturou com o resto da bagunça, não se sabe. Dois pés de ferro ligados a um tampo de vidro fixado na parede, manchas arredondadas de líquidos secos e sujeira. Na porta da frente, o lavabo, uma marca de mão suja no meio do batente. Suja de alguma coisa marrom, ou vermelha. Vinho, sangue, terra, tanto faz. Passou ali e deixou a marca. Passando pela porta uma montanha de papéis empilhados no cento de lixo, uma pia um pouco vomitadinha, assim, no canto, de leve, de bêbado que tentou lavar a merda mas não teve muito empenho.

Mais pra frente, na segunda porta, o quarto de hospedes. Acabado. A cama de solteiro está só o estrado, com o lençol todo embolado num canto, o colchão meio em baixo, meio em cima da armação e uma porção de objetos aleatórios no chão. O controle da TV, um cinzeiro virado, alguns porta retratos com fotos de viagens minhas, um monte de flores de plástico, uma furadeira sem broca, alguns copos, latas e uma bolsa de mulher que não me animei a investigar. Na parede, inusitadatamente bem escrito, numa caligrafia feminina, delicada, feita a batom cor de rosa, um recado. “Fui chupada aqui” e uma seta apontando para a cama sem colchão. Bom pra ela, acho.

Lá no fundo do corredor a porta do quarto, do meu quarto. Dentro, um cômodo nitidamente mais organizado que o resto da casa. A cama, de casal, está pelada, com o colchão sem lençol, cobertor ou coisa que a cubra. No chão um par de sutiãs de cores diferentes, um vestido, um pedaço de pano retorcido que adivinhei ser uma calcinha minúscula e o resto até que estava inteiro. O telefone do criado mudo foi para o chão, o abajour estava milagrosamente inteiro, nada escrito na parede, umas três ou quatro garrafas perto da parede, copos e um par de pernas jogadas do outro lado, depois da cama. Fui até lá e um corpo de mulher jovem dormia jogado entre o edredom que deveria estar sobre a cama.

“Bom dia”, desejei a ela, que estava acordando com a minha presença. A voz saiu rouca, grave, seca e o copo d’água na minha mão era um sinal de que o corpo precisava descansar. Ela se virou para mim, com os cabelos escuros grudados na cara, bagunçados e sem formato e percebeu que estava sem roupa nenhuma. Se cobriu assustada, me olhou de novo, olhou para o quarto, ao redor, para si mesma e perguntou da outra. “Foi embora, deixou um sutiã e você…”, e sorri, porque não tinha outra cara para fazer diante de alguém que foi deixado para trás. Durante alguns segundos ela ficou parada, em silêncio, como se recuperasse memórias de muito longe, até me olhar com um rosto muito sério e temeroso perguntando o que a gente tinha feito ali. “Pra resumir, foi como ter um circo dentro do quarto!” e saí pra ela poder assimilar.

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Quarta-Feira

Um monte de cigarros, todos fumados. Uma porrada de bituca velha socada num cinzeiro que mais parecia uma pilha de lixo, com filtros usados de todas as marcas misturados com papeis de Trident e 7 Belo. No resto da mesinha o campo de batalha estava formado. Garrafas de cerveja meio bebidas, copos, alguns trincados, dois quebrados e um monte de amendoins jogados e pó de cinza de narguile misturado com cinza de cigarro misturada com cerveja derramada misturada com um pó branco, cocaína, eu acho, não sei, não vi ninguém cheirando. Na verdade, não vi muita coisa que acho que aconteceu.

Tem uma mancha vermelha grande no tapete, que deve ter vindo de cima da mesinha. Acho que é catuaba, ou vinho, mas pode ser também groselha, sempre tem groselha nessas merdas de copos que quebram bem em cima do tapete. Bom, vai fazer companhia pras outras manchas. A TV tá ligada, sem som, no canal pornô, mas eu tenho certeza que não liguei. Alguém ligou, acho que lembro de todo mundo aqui no sofá assistindo, rindo horrores e umas pessoas fazendo a “dublagem” das cenas. Não deve ser difícil dublar filme pornô, né? Sei lá, às vezes o som nem é tão importante assim.

Minha roupa está ok. Não sei onde foram parar meus tênis, mas isso é o de menos. Por algum milagre não tem nada derramado em mim, pelo jeito não estou rabiscado, nem com pasta de dentes na cara. Bom sinal de maturidade da galera, antes isso seria de lei. Esse meu sofá precisa de substituição urgente, tempo, cartão vermelho, expulsão, sacrifício, guilhotina e morte. Péssimo para dormir, ótimo para sentar. Qual é o sentido? Você se sente confortável sentado, aí quer se deitar para ampliar seu conforto e é obrigado a enfrentar o inferno na Terra. Não dá mais, vou terminar com ele logo menos, pode apostar.

Esse solzinho entrando pela janela faz a sala parecer muito mais confortável. Deixa tudo meio sonolento, meio clarinho com sombras macias, me dá até um sono. NOSSA, que dor de cabeça! Jamais deveria ter tentado tirar a cabeça do sofá, parece que toda minha pressão foi parar no cérebro e ele quase explodiu. Meu deus, que coisa horrível essa de beber o mundo e não tomar Engov. Puta merda, que dó, meio violão tá ali jogado, com duas cordas quebradas, filhosdasputas! Para mim quem não tem respeito com criança, velho, bicho e instrumento musical precisa mesmo é se foder no colo do capeta.

Ah, sei la, to mal. Acho que tô enjoado, não sei ainda, tem um monte de coisa com defeito aqui nesse corpo largado no sofá. Tem uma dor estranha dos dedos, um mal jeito nas costas, um torcicolo de leve por causa da porra do sofá enganador, a dor de cabeça gigantesca e umas escoriações estranhas. Não lembro de ter caído nem de ter brigado com ninguém, mas tô aranhado pra caralho. No pescoço, nos braços, na barriga. Tentei abraçar um gato ou outro felino violento qualquer? Acho que tô sem cueca, não sei, esse ziper da calça ta me incomodando.

Tá, são 9h. Eu não deveria estar aqui, deveria estar na redação escrevendo qualquer coisa sobre saúde, bem-estar e vida leve. Eu deveria começar a viver o que eu escrevo, e não exatamente o oposto. Estou atrasado pra caralho, não vai dar pra inventar nenhuma história, minha cara deve estar entregando tudo, cada copinho que eu virei na boca, ontem. Cara, não sei de onde vem a energia dessa galera de fazer bagunça no meio da semana. Não sei de onde vem a minha também. Qualquer dia desses morro no meio de um brinde, fudido, caído no chão em estafa física. Putz, e hoje ainda é quarta-feira.

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