Tô numa pegada de lembrar de amigos, falar sobre amigos, viver com amigos, porque não é sempre que a gente lembra, mas são eles os verdadeiros donos das nossas vidas.
“Relaxa, Rah! A gente nunca vai acabar, nunca vai morrer. A gente vai ser pra sempre… nós somos eternos!”
No dia em que eu disse isso, percebi que a vida é uma coisa sem formato. Rah, que é a Raíza, é uma amiga que, na noite em que essas coisas saíram pela minha boca, estava se despedindo dos melhores amigos e se preparando para embarcar para a Espanha, em uma viagem que ainda não terminou e que, em alguns dias, eu penso que nunca vai ter fim. Eu lembro dessa noite. E lembro, principalmente, porque os sentimentos que ficam no ar quando alguma coisa grande está acontecendo são eternos. Você nunca vai se esquecer de uma grande mudança pela qual passou, ou que provocou em alguém ou algum lugar.
A gente tinha saído do bar onde tinha sido a despedida oficial, com todos os amigos, um monte de gente da família, muita bebida, música, gente perfumada e gargalhando. “Vai ter uma festa na casa de um cara”, eu ouvi, quando já estava quase decretando game-over. No dia seguinte, às 7h da manhã, eu precisaria estar lindo e bem disposto para tirar a foto da carteira de motorista, enfrentar filas do Não-Poupa-Tempo e já passava das 2h da matina. A Rah estava impossível e, mesmo que eu usasse mil argumentos contrários, já sabia que não teria como fugir da segunda noitada na mesma noitada. Era a vida, toda rígida, amolecendo, provando que o improvável acontece quase sempre.
“Vamos passar na minha casa antes que eu preciso trocar de roupa!” e eu não tinha como contrariar. No carro dela só toca rap, dos nacionais, dos que fazem sentido e, nessa noite, Rael da Rima era rei. Saiu o salto, saiu o vestido, veio a calça e o tênis. Enquanto eu esperava na sala, com um gato me olhando feio, pensava sobre como as coisas viram, giram, rodam rápido. Em um momento eu estava em casa. No outro estava bêbado conhecendo amigos da minha grande amiga. Depois estava ouvindo rap num carro que cortava a garoa noturna numa cidade já quase vazia. Depois estava sendo julgado por um gato e, no minuto seguinte, estava segurando uma garrafa de St. Remy roubada do armário da sala e indo para uma casa X, de um cara X, esperando nada mais além do inédito.
Essa parte é um lapso, porque eu esqueci ao certo como começou o assunto. Só sei que o carro parou, a gente estava falando sobre coisas que param no ar, que pairam, que congelam e, de repente, pintou uma preocupação estranha de que talvez, só por acaso, a nossa amizade estivesse acabando ali, naquela noite, naquele último rolê. Tipo um Último Tango em Paris, tipo um Último Rap em Santo André. Bateu aquele desespero de um minuto, quando as pessoas se olham procurando esperança dentro da retina do outro e, de repente, veio isso. Veio essa certeza, tipo a garantia de que o chão que a gente pisa é real, de que existe mesmo o ar que a gente respira, que os olhos enxergam o que é real. Naquele momento eu tive certeza de que a gente nunca ia morrer.
Depois disso a gente chorou, ou sentiu que ia chorar e aí saímos do carro rindo, como se estivesse exorcizando uma coisa ruim que, na verdade, nunca existiu. A verdade é que a verdade não corresponde verdadeiramente à verdade. A gente sente medos de coisas que não nos ameaçam, perdemos coisas que nunca foram nossas, sentimos falta de sensações que ainda não sentimos e passamos tempo demais desejando o indesejável. Amizades verdadeiras não se dissolvem, não pairam, não congelam. São vivas, quentes e eternas. Não acabam, não têm fim, não morrem. Naquele dia a eternidade mandou um beijo pra nós dois.
A noite, daí pra frente, seguiu meio nebulosa. Tinha umas bebidas, umas mesas, umas pessoas estranhas, fugimos do rolê antes mesmo de ele começar, rodamos pela cidade com gente dormindo dentro do carro, com o dia nascendo, com as horas encurtando e quando chegou o momento eu estava passado, quase dopado, na fila da fotografia 3×4 esperando para renovar meus documentos. Eu dormi no banco do Poupa-Tempo como um mendigo que precisa achar um teto para fugir do frio. Dormi largado, com zero dignidade, para acordar e ter a certeza de que aquilo não era nada. A noite ainda existia e nunca mais iria acabar. Naquela noite eu e a Rah nos tornamos imortais.