O visor mostrava letras quadradas que deslizavam para a esquerda. LANA DEL REY – OFF TO THE RACES e depois disso foi só ilusão.
Os que vieram antes foram testes, ensaios e treinos. Os que virão depois serão retrabalhos, refilagem de arestas, refazendas e cópias. O texto definitivo do assunto de sempre é este, sempre será e nada, nem ninguém, poderá alterar o que se faz eterno. O definitivo não muda, não cresce, não mingua e não se desenvolve. É eterno, perene, irreparável, incontestável e sólido. Poucas coisas na vida, no mundo e na existência são tão claras e simples quando a definição de algo. Tornar eterno é complexo, mas é necessário para que haja um norte, um ponto de partida ou de chegada, uma referência, qualquer merda que sirva de apoio. O definitivo parte do centro para frente e para trás, mas sua posição nunca mudará.
“I can’t deny the way he holds my hand / And he grabs me, he has me by my heart”
Existem sensações eternas. Coisas que o corpo registra e compara com outras e, por associação natural, deduz se é melhor ou pior do que o que já se sentiu antes. O toque dela, por exemplo, é das coisas que meu corpo nunca esqueceu. Uma pele macia, da temperatura exata para esfriar todo meu calor, dar cor perfeita para registrar todas as minhas visitas, com o cheiro perfeito para roubar minha razão. Passei horas, muitas, escolhendo com a boca qual era o meu centímetro preferido nesse cobertor do que me é perfeição. Nunca encontrei nada parecido.
“White bikini off with my red nail polish /Watch me in the swimming pool”
Eu me divertia vendo o desfile do pedaço do céu por dentro de casa. Eu gostava das cores e da falta delas, do movimento dos cabelos, dos tons pastéis que iam dos lábios pálidos aos pés brancos. As unhas pintadas de cores normais, as roupas de sempre, os vestidos de sempre, os feitiços de sempre. Me deliciava assistindo os movimentos, no mar, em casa, comendo, dirigindo, falando, rindo, me abraçando, dormindo e em todos os lugares. Gostava de ter certeza de que estava viva, bem viva, voando para cima de mim, pra dentro dos meus sonhos e diminuindo minhas horas de sono, minha produtividade no trabalho e minha vida social.
“Be a good baby, do what I want”
No começo eu incentivava a liberdade e a independência. Gostava de tentar fazê-la perceber que meu senso de liberdade vinha do fato de também querer que fosse livre. Depois o tempo passou, a liberdade fez cama na sala, estava morando lá em casa e eu comecei a exercitar o poder de persuasão. Comi toda a confiança que soprei, engoli a independência e fui pagando caro, bem caro, pela minha fome de ações independentes que eu mesmo incentivei. Comi até as certezas de antes, comi as alegrias, as surpresas e fui plantando uma porção de coisas ruins. Plantei um pé de dúvida gigantesco que foi esticando as raízes pela casa toda e levou embora tudo que existia na nossa hortinha de confiança e cumplicidade. Eu destruí toda a liberdade de nós dois.
“And I’m off to the races, cases of Bacardi chasers /Chasing me all over town /Cause he knows i’m wasted”
Quando percebi que tinha estragado tudo fui buscar o estrago do que ainda restava em mim. Garrafas, garrafas, garrafas, garrafas, copos, plásticos, copos, taças, garrafas, latas, latas, latas, latas, cigarros, latas, papéis, fumaças, garrafas, garrafas, acho que eu vou gorfar, garrafas, garrafas, dia, noite, dia, noite, latas, noite, garrafas, dia, pegaram na minha bunda, garrafas, garrafas, cigarros, garrafas, papéis, copos, taças, noites, muitas noites, muitos erros, intermináveis dúvidas e um comportamento repulsivo aos olhos da sociedade. Fui me bebendo num fim de mundo chamado Eu e quando acabava a garrafa eu tinha dinheiro suficiente para comprar muito mais. Me embriaguei de auto-esquecimento.
“Because I’m crazy, baby / I need you to come here and save me”
Não é novidade pra ninguém que meu remédio tem teu nome no rótulo. Vem num potinho de vidro pequeno, numas cápsulas alaranjadas e eu não sei tomar com calma. Ou não tomo, ou me enfio em overdoses violentíssimas que mudam o rumo de tudo que eu faço. Mas ainda é, e sempre será, definitivamente, a minha única cura. Um tratamento intensivo e agressivo de você, pra me desintoxicar, me salvar, me trazer de volta desse monte de infernos que eu crio pra me divertir quando você não está por perto.
“I’m your little scarlett, starlet / Singing in the garden / Kiss me on my open mouth / Ready for you”
Nunca foi minha, mas gostava de se emprestar para mim. Eu aceitava de bom grado, pintava meus dias com a tua cor e fazia de tudo para que o empréstimo não acabasse nunca. Qual foi a besteira que caiu na minha vida para eu, ao invés de desejar a eternidade, ter cancelado o contrato. Não era um contrato, na verdade. Contratos são prestações de serviço, são acordos, mas a gente não negociava um com o outro. Nunca foi assim. A gente tinha um pacto de amor e atenção. Eu prometi cuidar de você se você prometesse cuidar de mim e a gente selou nosso tratado de cuidados com um beijo que até hoje ecoa no fundo da minha língua, lá em baixo, quase no meu estômago, como se eu tivesse engolido um pedacinho de você quando deu um pedacinho de mim para você comer.
“And he shows me, he knows me / Every inch of my tall black soul”
Eu olhava pela janela, ou ficava debruçado na sacada olhando o sol fritar todo mundo, os carros passarem mais rápidos do que o limite de velocidade permitido e a vida acontecer no parque, com crianças andando de bicicleta e pais orgulhosos planejando uma melhor camada de ozônio para suas crias. Mesmo com o olhar distante, o pensamento mais ainda, eu sabia quando ela estava chegando. Vinha descalça me abraçar, passar as mãos ao redor da minha cintura e beijar meu pescoço como se fosse banal, comum, qualquer coisa. Eu sabia exatamente o que ela ia dizer antes de dizer. Sabia até quando estava me olhando, como se me fosse dado o dom do olho na nuca. A gente falava as coisas ao mesmo tempo e sabíamos quando o outro estava pensando ofensas ou besteiras antes de qualquer boca se abrir. “Seu mindfreak” ela me chamava, e ria, porque eu adivinhava tudo, da cor da calcinha aos planos pro carnaval. Eu, de casa, senti cada abraço, cada beijo, cada lágrima e cada suspiro que ela deu, bem de longe, bem de fora de tudo isso. Existe uma conexão orgânica entre os meus sonhos e a realidade que ela cria.
“Likes to watch me in the glass room, bathroom / Chateau Marmont / Slipping on my red dress / Putting on my make up / Glass full, perfume, cognac, lilac, fume / Says it feels like heaven to him”
Vê-la viver me dava vontade de ser melhor, de emagrecer, de fazer exercícios, de beber menos, de ser mais calmo, de ser mais responsável, de trabalhar mais duro, de fazer tudo dar certo para ser um bom amante, um bom marido, um bom pai, um bom futuro. Eu me segurava nela para fazer de mim seu porto seguro.
“Keep me forever, tell me you own me”
As coisas descambaram de vez quando percebi que tinha me dado de corpo e alma para ela sem ter qualquer tipo de segurança, retorno ou cheque calção. Eu não tinha mais o controle da minha vida, meus dedos digitavam coisas diferentes do que minha mente queria escrever e comecei a mentir para mim para não mentir para ela. Eu sentia medo de decepcioná-la, queria muito, mais que tudo, que fosse feliz, que desse tudo certo, que as coisas fossem boas e no fim de tudo me vi seco, apático, trancado em casa dando tudo que eu tinha para uma causa que já estava muito pesada para carregar sozinho. Fiz o replantio da felicidade fantasiando o futuro de solidão. Nunca fui tão de alguém, sendo de ninguém, quanto sou hoje!
“God I’m so crazy, baby / I’m sorry that I’m misbehaving / I’m your little harlot, starlet /Queen of Coney Island / Raising hell all over town / Sorry ‘bout it”
No começo a gente se preocupava em achar culpados, ficávamos horas, dias, semanas discutindo quem é que tinha pisado na bola, quem foi o último a magoar quem. Mas no dia que a gente percebeu que a culpa era enorme, e dos dois, meio sem querer senti um alívio imenso. Era como se eu fosse um louco caminhando num ambiente de gente normal, incomodado, deslocado, sozinho, e descobrisse que, na verdade, todo mundo ali era tão louco como eu. Era um absurdo atrás do outro, erros de conduta e opinião em série, meus e dela, e a gente ia se arrebentando e levantando assim, pedindo desculpas e aprontando cada vez mais um na vida do outro.
“I need you, I breathe you, I’ll never leave you / They would rue the day I was alone without you”
É uma tragedia anunciada o estrago que a falta de você faz na minha vida. Minha mãe já sabia, no dia em que eu dei a notícia, que ela perderia, por alguns meses, ou anos, o bom filho que tinha em casa. Você sai e entra uma entidade maligna que me toma conta de uma maneira tão maciça e perene que me confundo até olhando o reflexo do espelho. Tudo que é de ruim eu sugo pra mim quando não tem você pra me guiar. É um fato claro, obvio e previsível. Todo mundo chora e teme pelo meu futuro quando não tem a sua cor aqui.
“Boy you’re so crazy, baby / I love you forever / Not maybe”
Ficou difícil, com o passar dos anos, não me viciar nessa loucura que a gente alimentava, regava bonitinha, via crescer e comemorava a cada novo centímetro. É uma loucura tão linda que começou a ser pra sempre, sempre pra sempre, e ninguém tinha mais nada para me oferecer que fosse melhor, maior ou mais intenso do que isso. Não existe droga com briza mais forte do que você com raiva de mim. Eu me viciei e nunca acreditei em ex-viciados. É minha sina!
“You are my one true love”
E no meio desse mundo de incertezas e coisas que parecem e não são, a única verdade incontestável no mundo é que a minha vida foi feita faltando um pedaço, de propósito, uma falha planejada, que foi criada para você concertar, um espaço para você preencher, uma vida pra você completar. Eu estraguei uma porção de planos, destruí um monte de confianças que demorei pra construir e ferrei com muita coisa boa. Hoje eu vejo uma culpa que nunca havia surgido para mim. Não existe nada definitivo. Nem o tempo, nem a presença, nem o amor, nem o desamor que se sente. Não há nada definitivo, nem mesmo este texto, nem mesmo eu e você e ninguém no mundo e todos do mundo. Está todo mundo sujeito a mudanças, faz parte do aprendizado e da evolução.
Eu prometi que não ia mais fazer isso. Também prometi plantar um pézinho de felicidade na nossa vida e prometi que ia ser para sempre, sempre que fosse possível ser. Pelo visto meu fraco para quebrar promessas começou a se tornar evidente. Desculpa, faz parte de mim, é do meu ser, assim como a necessidade de dizer que nada no planeta se iguala a você e suas coisas todas.