Arquivo mensal: outubro 2013

Amores de festa de sábado à noite

Estava quente no quarto, era domingo, daqueles domingos que não têm absolutamente nada de especial, que o céu está azul e ensolarado, mas ninguém quer ir ao parque, nem tomar um sorvete, nem dar uma volta de bicicleta, nem nenhum clichê de domingo. Mais ou menos uma da tarde, por aí, uma cama de solteiro insuficiente para os dois, insuficiente até mesmo para um solteiro sozinho, e o calor visceral do ar, do sol e dos corpos semi-suados tentando dormir grudados naquele bafo sufocante.

Nenhum carinho, nenhum beijo de “bom dia meu amor”, nada. Não era amor, não era especial, não era nada demais. Ele passou por cima dela como se pulasse uma mureta, caminhou até o banheiro e por instinto fechou a porta à chave. O rosto no espelho, inchado, amassado, com olheiras e sem brilho. Água, muita água, água sem parar, um oceano de água doce da torneira para as mãos, das mãos para o rosto, do rosto para o espírito e do espírito para o ralo seco da pia. Escovou os dentes, olhou-se no espelho e gostou da nova cara: “bom dia!” disse, sorrindo para si e voltando para o quarto.

Ela estava acordada, com as costas oferecidas ao teto, os cabelos esparramados pelo travesseiro e vermelha. Gente de pele clara geralmente fica vermelha. Mesmo usando apenas calcinha, parecia estar tomada por um calor insolúvel e imutável. Sorriu para ele. Ele sorriu para ela e se beijaram comedidamente. Ele, com gosto de menta, ela, com gosto de guarda-chuva velho. É o mal de beijar pessoas recém acordadas. O encanto do “amanhecer ao teu lado” é aniquilado pelo cheio de podre da boca de quem bebeu, fumou, se drogou e dormiu logo em seguida. Ele tinha fumado, bebido, se drogado mais e dormido logo em seguida, mas acordou mais cedo e por isso não fedia mais. Nessas situações, dignidade é um sinônimo para gente limpa e saudável.

Ele se deitou sobre ela, com todo seu peso, com todos os seus ossos, músculos, pesos, pelos e poros. Passou a mão por baixo de seus ombros e agarrou com força os peitos dela, comprimidos contra o colchão, amassados como sua cara, como seus cabelos, como sua aparência toda. “Não, primeiro eu preciso tomar banho”, ela disse, e ele respeitou, a contra gosto, o senso de higiene mínima da moça. Balançando suas curvas suaves de mulher fora dos padrões de revista, segura e sensual, se jogou para dentro do banheiro como se fosse o seu próprio quarto. A cama de solteiro vazia e úmida, com o lençol todo amassado, vítima de uma noite de sono sem sexo, sem ações, sem emoção alguma. Drogados, bêbados e fodidos. Mortos. Deitados em uma cama, quase pelados, quase transando, quase gozando, mas só dormindo, recuperando vidas passadas em pesadelos péssimos.

Depois do banho ela saiu sem roupa. Já estava sem roupa antes, mas a ausência da calcinha dava um tom quase fraternal à cena. É estranho ver alguém pelado de cara, sem cerimônias, quando não foi você que tirou nenhuma das peças de roupa. Fica quase banal, nada sexy, nada erótico, só diário e simples. Mas ela foi na direção dele, meio seca, meio molhada, com os cabelos grudados na nuca, e durante alguns minutos se contentaram em apenas beijar o outro. Um beijo de verdade, sentindo o profundo gosto de pasta de dente, de boca quente com ar gelado, com ela acariciando os cabelos dele, com ele deslizando a mão pelos pontos molhados nas costas dela.

Daí, transaram um monte. Primeiro na cama, depois no chão, depois na sacada, depois no chuveiro de novo. Ele se cansou na segunda, ela foi quem forçou as outras duas. Homem quando não quer demora horas pra gozar e ela estava interessada nessa persistência, no martírio, naquela ardência que dá quando o sexo já passou do limite do saudável e normal, no quase sofrimento. Ela queria a câimbra, queria o suor abundante, a boca seca, a garganta arranhada dos gritos, dos urros, os dentes frios da boca ofegante e a pele toda vermelha, arranhada, estapeada, friccionada, gasta até o fim. Era já o fim da tarde, cinco, seis, sete horas. Céu escuro, fome aguda, bagunça instalada, desidratação suave. Eles deitaram mortos vivos de olho no teto sem dizerem mais nenhuma palavra. Coisa normal desses amores de festas de sábado à noite.

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Que se abra!

(Estou enferrujado, esse é só para aquecer e voltar…)

Saiu de casa cedinho, não devia ser nem 6h da manhã, numa quinta-feira sonolenta, fria, nublada, úmida, nem um pouco atraente a quem quer que fosse. Os cachorros vadios não estavam lá. Os gatos selvagens deviam estar dormindo debaixo de alguma garagem, algum telhado quente, junto com morcegos, aranhas e pombas, porque não tinha nenhum ser vivo na rua. Nem bicho, nem gente. Chinelos Havaianas tamanho 36, canelas calejadas, pernas finas e lisas, peladas, que terminavam dentro de um vestido de mangas de cor crua, cor de nada. Cabelos presos em formato de bola por trás de um cocar indígena de penas fartas e tramas bem costuradas, a pele arrepiada pelo frio, uma vela acesa em uma mão, um galho grosso de árvore na outra. Tinha 16 anos, a menina, na época. Ontem.

Caminhou pela rua até o fim, até onde o asfalto ganhava formato de gota, num círculo de casas com os portões voltados para o centro. “Rua sem saída”, dizia a placa amarela na esquina a poucos metros dali. A vela, durante os passos no escuro, servia como uma lanterna das antigas, mostrando o pouco de chão que se apresentava nos próximos metros. Quando chegou no centro do fim da rua perdeu algum tempo, indefinido, olhando para longe, como se pudesse ver além da escuridão, dos postes queimados, dos muros das casas, das fronteiras da cidade, do mundo inteiro e do tempo que a vida tem pra viver. Viu além e colocou a vela acesa no chão. O fogo não se abalou.

O galho grosso era segurado, agora, com as duas mãos, à frente do corpo, em uma posição horizontal na altura do peito, com sua extensão perpendicularmente alinhada com o centro da chama da vela. Fechou os olhos, mesmo que o escuro já a tivesse privado de qualquer paisagem, e começou a dizer coisas. “Pelo homem que assistiu à reunião. Pelo tipo de gente que anda com as mãos no chão e os pés no céu. Pelo animal que tinha tempo demais para gastar e preferiu morrer. Pelas flores pretas do jardim do além. Pelas árvores que nascem com raízes azuis.” Seguia recitando uma espécie de agradecimento. Uma lista enorme de nomes decorados que mereciam uma menção durante seu ritual.

Era uma garota de 16 anos, na madrugada de um dia frio e úmido, no ano de 2013, no início de outubro, com uma vela acesa colocada sobre o asfalto no fim da rua de sua casa, segurando um cajado de madeira falando sobre criaturas, acontecimento e pessoas que não cabem no espaço da fenda da porta do mundo real. Não eram reais, para nós, mas eram alguma coisa e isso bastava para fazerem parte daquilo. Enquanto falava, a chama da vela crescia, cada vez mais alta, fina como uma linha luminosa levantando na escuridão. De repente sua voz adquiriu ares de fúria, como se desse broncas ou acertasse contas com alguém. “Pelos que são de ontem. Pelos que viram o que não vi. Pelos que são o que são. Pelos que vieram para ir. Pelo que foram para mais além de ontem. Pelo ontem que nunca será hoje, nem amanhã, nem eternidade.” E seguia falando, cada vez mais rápido, mais ríspida, mais alto, com a chama mais perto do cajado.

No exato momento em que o fogo em formato de linha tocou a madeira, ela segurou a cabeça do cajado com a mão direita, num movimento rápido e preciso, girando o galho sobre sua cabeça algumas vezes para, no fim, segurá-lo com as duas mãos e bater com a ponta no chão, com força, esmagando a vela em sua totalidade, sem errar, sem cair para fora, sem espaço para imprecisões: “QUE SE ABRA!”, berrou com toda força que sua garganta e seus pulmões puderam imprimir. O cajado tocou no chão, as calçadas se afastaram, os carros estacionados saltaram para o alto em um ballet descoordenado de destruição,  com barulho de metais retorcendo, vidros quebrando e a rua se abrindo ao meio em um buraco visceral como um corte de faca cega.

Era o inferno lá  no fundo, com luzes alaranjadas e líquidas dançando por todo lado, enquanto o bairro todo se retorcia numa onda sísmica que não ia parar. E foi se alastrando, levando o resto da cidade, abrindo cada vez mais, levando lagoas, mares, montanhas e paisagens inteiras. Árvores, fotografias e histórias, tudo sumindo no terremoto mais ráp0ido que já existiu. No fim uma onda se encontrou com a outra, do outro lado do mundo, se chocaram com força e velocidade equivalentes e assim como a física mandou que fosse, voltaram pelo mesmo caminho que foram. Tudo foi voltando ao lugar, as destruições se arrumando, os vidros quebrados se juntando em poeira no ar até formarem janelas, casas, prédios, rios inteiros e no fim, fechando a cratera aberta no meio da rua como se nada houvesse acontecido.

Ela olhou ao redor e não viu nada nem ninguém. “É, funciona”, disse curiosa, antes de caminhar com os chinelos úmidos, o cajado com a ponta suja de parafina branca e os cabelos soltos deitados nas costas até arrastaram no chão por trás dos calcanhares, surgindo da cabeça adornada pelas penas de pássaros que já não existem mais, presos num cocar de índio do futuro que não pertencem à nossa história. Ninguém viu. Ninguém ouviu, Ninguém soube. Mas só de estar escrito, já é real.

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EU A QUERIA MAIS QUE TUDO NO MUNDO (PARTE 2)

Demorei alguns segundos para perceber que estava tocando uma música. Ela tinha ligado o celular em alguma espécie de caixa de som high-tech que eu tinha achado que era um banco no chão. Largou as roupas todas pelo chão, estirou os pés sobre a mesinha de centro e ficou dançando como quem está sozinho no último lugar do mundo antes do apocalipse. Ela queria que eu a visse, mas não queria se sentir observada. “Dance como se ninguém estivesse olhando” eu pensei, tentando traduzir os olhos fechados dela, os braços pairando descontrolados no ar e os cabelos estapeando o rosto por todos os lados. Mesmo estando completamente nua a cena parecia muito mais sensual pelos movimentos do que pela falta de roupas. Ela parecia gostar mais do próprio corpo do que qualquer homem que um dia – inclusive eu – tivesse admirado seus formatos.

Ela, vez em quando, me olhada e sorria, enquanto eu continuava paralisado de pé, de costas para a janela gigante, olhando um absurdo de mulher dançar para mim. Em determinado momento ela desceu da mesa, envolveu meu pescoço com delicadeza usando os longos e longilíneos braços que tinha, enquanto me beijava com calma e calor, fazendo, pela primeira vez, o tesão vencer a embriagues. Depois do beijo ela pegou minha mão e me guiou até uma espécie de poltrona grande e sem braços. Me mandou abrir as pernas, ficou em pé na minha frente e me ordenou que a tocasse. “Me alisa!”, ela disse, imperativa e simples assim. Eu corria os dedos pela curva firme e infinita de sua cintura, desenhava o contorno de seu umbigo seco e tímido perdido numa imensidão chapada de uma barriga em forma de tábua. Ela era uma sombra escura e sensual se arrepiando com a minha exploração minuciosa e, com um pouco de atenção, eu podia ver a pelugem quase invisível que cobria toda sua pele se arrepiar.

Depois de algum tempo passeando com as mãos por seu corpo, ela se virou, sentou-se em meu colo com as costas pesadamente coladas em meu peito e, agarrada às minhas duas mãos, guiou-me pelos lugares em seu corpo que eu não podia ver. “Me faz gozar!”, ordenou novamente, enquanto apertava uma de minhas mão em um dos seios, guiando a outra para o meio das coxas abertas e apoiadas sobre os meus joelhos. Era um jogo. Demorei a perceber porque estava bêbado demais, perdido demais na escuridão do apartamento que só me mostrava contornos iluminados pela cidade além do vitrô imenso da parede oposta. Não precisava, mas fiz questão de fechar os olhos para sentir com as mãos o que, de qualquer maneira, eu não teria como ver. Ela ofegava se movimentando descontroladamente, arranhando meus braços e me dando sinais do que fazer para cumprir a ordem que me fora dada. Eu tinha de fazê-la gozar.

Um grito, uma súbita contração dos músculos e a mulher que se oferecia ao além no meu colo agora fechava-se rumo ao seu próprio centro, enquanto eu ouvia sua voz e seus gemidos saírem de uma boca de dentes cerrados com força. Levantou-se mole e me chamou para levantar junto. Sem perguntar nada ou avisar, puxou minha camiseta para fora do corpo, abriu minha calça, abriu o zíper da minha calça, tirou qualquer pano que pudesse me cobrir e ficou um tempo me olhando. Me olhava como quem mata curiosidade, como quem lê uma notícia importante. Eram olhos de “humm, é assim que você se parece!” e por alguns instantes me senti extremamente invadido. Ao contrário dela, ser observado sem pudor não me deixava excitado.

Nos beijamos durante algum tempo, trocando carícias delicadas e lentas. São momentos como esse que mostram que a vida é feita para degustar, e não simplesmente engolir. Eu sentia sua respiração quente, suas mãos lisas percorrendo meus braços, seus pelos pubianos roçando em mim e não tinha nenhuma pressa de passar para qualquer outro tipo de contato. “Eu sempre quis fazer isso”, sussurrou em meu ouvido, antes de desgrudar de mim e caminhar para a janela. Abriu as duas lâminas de vidro para os lados, deixando entrar uma rajada mortal de vento gelado no apartamento. Com os vidros abertos a cidade continuava silenciosa, com seus sons feios de buzinas e pessoas abafados pelo com do vento violento. A visão dela debruçada na janela olhando o horizonte se misturava com a própria cidade iluminada e, sem querer, me senti com sorte e feliz: eram duas versões do paraíso, cada uma com seu brilho.

Ela me olhou por cima dos ombros, sem se virar, e me chamou para me juntar a ela. “Eu sempre quis fazer isso, mas pensando bem, só faria sentido fazer isso com você. Você dá valor pras coisas importantes!”, disse. Eu não fazia a menor ideia do que ela queria dizer, nem do que era o “isso” a que ela se referia. Mais uma vez sem avisar, mantendo sua postura submissamente controladora, ajoelhou-se no chão de frente para mim, se colocando entre mim e a visão da noite mais impressionante que eu já tivera na vida. “Esquece de mim, pode se perder”, e decidiu que seria dessa maneira que terminaríamos a noite. Eu me segurava no parapeito e perdia o olhar no horizonte, vendo luzes amarelas pegando fogo, flashes estourando em todas as direções, contornos e linhas disformes no além e um conteúdo de caixas pretas e altas perdendo o foco, enquanto ela sugava de dentro de mim, lenta e antropofagicamente, qualquer coisa que ela julgava muito importante para que aquele momento desse certo. Eu nunca mais me recuperei daquela noite e antes mesmo de entender, eu já estava acordando largado no sofá da sala, com ela me olhando da janela, sorrindo e me dizendo que tinha acabado. “A gente não tem mais nada pra fazer um com o outro…”, e eu não pude nem contra argumentar.

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