Arquivo mensal: abril 2012

Morrer de amor

Magro como a morte enrolada num pedaço de pele coberta de cor, seco, esquálido e honesto. As costelas no peito descoberto desenhavam a anatomia do homem que não recheou o corpo por passar tempo demais preenchendo a alma. Os pés largos e secos esmagando um par de chinelos Havaianas já bem gastos, daqueles que parecem uma folha de borracha.

As canelas finas, cambitos desafiando a gravidade, joelhos calejados de quem já tomou muito rodo da vida, um short de nylon bem vagabundo, chapiscado de tinta de parede, um umbigo profundo como o fim do mundo, em estômago vazio, um peitoral de peles grudadas em ossos sem carne nenhuma para disfarçar os contornos. Era uma obscenidade anatômica olhar aquela caixa torácica milimetricamente desenhada debaixo da pele parda de sol.

Aí os ombros eram outra pornografia da magreza, com ossos saltando para fora do esquadro, para cima e para os lados, suspendendo braços que pareciam galhos de uma árvore que já não bebe água há muito tempo. As duas varetas de gente meio estendidas pra cima, com os cotovelos meio dobrados, as mãos meio fechadas e os dedos indicadores apontando pro céu. As unhas amareladas e rústicas, os dedos calejados e finos, o pulso marcado e seco. Braço de gente que sabe do mundo.

O pescoço esticado, o queixo magro virado pro alto, os olhos apertados contra o sol e o rosto cheio de marcas de expressão, marcas do tempo, marcas de cortes, marca de gente que viveu pra caralho. Tinha já muita idade, apesar de ainda novo. Um bigode ralo, olhos fundos, pele escura e um olhar amarelo em direção ao além escondido no meio das nuvens. Era um cigarro que mantinha a boca fechada, se não fosse ele, abriria. Os dedos em riste, os punhos altos, o olhar no infinito e a prece recitada aos trancos e barrancos num poema mental.

“Pai do céu / que me protege e me guia / estica tua mão sobre mim / abençoa meus passos / me concede a graça divina / e eu, em troca / lhe concedo meu coração / minha alma / minha fidelidade / meu amor / e minha fé. / Você / que sabe tudo o que eu sei / me livra da dor da falta / do peito apertado / porque meu corpo já não aguenta mais. / Acredito em teu poder / ouço a tua voz / sinto teu toque e confio em ti. / Não me abandones / pois meu destino é teu!”

Ali, naquela laje, sobre aqueles chinelos, respirando aquele cigarro, nascia um herói. Não pela reza, nem pela pose de mártir da fé, mas porque sozinho, no máximo da sinceridade e devoção, escolheu dar seu coração para alguém que não conhece, nunca viu e nem veria, a continuar devotando seus sentimentos a uma moça que não sabia lhe dar reciprocidade. É o desespero de quem assiste um velho – como ele – se apaixonar por uma menina. É a certeza do fracasso e a esperança e torcida pelo inusitado. Não virou amor. Não ia virar. E a solidão fez casa de ferro no lombo dele, que foi envergando até ser obrigado a dar o coração por não ter mais força de carregar o peso todo!

Quando a tristeza de viver sozinho comeu a carne toda, a saúde toda, o brilho todo, sobrou o coração sozinho no salão de baile, petrificado e moribundo, fingindo estar dançando com um cabo de vassoura debaixo do globo de espelhos rodando lentinho ao som de uma música que ninguém mais podia ouvir. A coragem de assumir que era fracasso anunciado desde o começo arrepia o ser humano. Entender a derrota é mais nobre do que comemorar a conquista. Como disse Paulo, naquela música velha: “não dá, não deu, não daria de jeito nenhum”, e foi o que rolou. Não rolou! E depois disso, depois de dar o coração pro céu, pra Deus, pra sabe-se lá quem estava ouvindo, ele relaxou e morreu num último trago de Marlboro vermelho amassado.

Disseram amém, ele foi e nada mais aconteceu naquele dia.

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Você

Eu lembro muito bem de como foi, da cor que tinha e do que eu senti. Era uma potencial noite de merda, frio da porra, chuvinha chata, eu com mil coisas na cabeça, mil problemas, mil dúvidas e no centro da cidade, ou seja, bem longe de casa. Saí do trem já franzindo a testa, com o rosto reclamando do choque com o frio. Passei as giratórias e subi a rampa da passarela como quem tem pressa de chegar no céu. Postes enferrujados, muretas pixadas, chão de borracha já bem gasto e iluminação amarela pra desenhar a garoa que caia. Cena bonita, mas banal e incômoda.

Andar ouvindo música ajuda a vida a parecer dramática e cinematográfica em suas mais simples demonstrações de movimento. Os vidros molhados dos carros estacionados na rua, a senhorinha com guarda-chuva da Barbie, o cara que vende milho lucrando absurdos debaixo do toldo da loja de lingerie já fechada. Tudo molhado, com frio e iluminado de luz amarela da rua. Meu rosto muito barbado, talvez bem acima do que a sociedade costuma chamar de “barba por fazer” escondido dentro de um capuz de blusa só registra o que está na frente. Não viro para olhar os outros, mas eles o fazem para olhar a mim.

Decidi, por qualquer razão não explícita na minha mente até hoje, ir pra casa apé. Um caminho de 4 km de pura subidinha que não mata ninguém, mas dilata os pulmões, a pupila, acelera o coração e faz o drama da vida tomar mais formas. A fumaça da boca misturada com a fumaça dos carros e o frio junto com a garoa e eu, um ponto marrom, preto e verde no meio da escuridão. Era um breu sólido desenhado por luzinhas de cidade ao fundo, trilha sonora em mp3 e visual psicodélico num mix de cores cintilantes e preto fosco. Só que de repente o céu abriu e a noite ficou assustadoramente real.

Não tinha mais cara de drama da vida, nem de friaca fora de época, nem de garoa chata, nem de nada. Era um buraco gigantesco no céu e depois dele um fundo preto do preto mais puro que eu já vi na vida cravejado de microscópicos pontos de luz que eu suspeite serem estrelas. Era o espaço em sua forma mais limpa. Sem atmosfera, sem nuvens ou poluição. Eu estava vendo o tal do além, do outro lado, do outro plano e estava achando lindo e medonho na mesma medida.

Aí caiu uma estrela. Caiu mesmo, tipo defeito na hora da colagem, ou como se alguém tivesse jogado pra mim. Veio numa velocidade assustadora, na minha direção e eu, como bom cagão que sou, não conseguia nem me mexer. Veio quente, brilhante, branca e perfeita, da luz mais bonita que eu já vi na vida e quando chegou eu peguei no colo. Tinha corpo, pernas, braços, peitos e dentes. Tinha dentes de verdade, dos que mordem maçãs, dos que machucam na hora do boquete, dos que batem no frio e dos que sorriem. E me sorriu.

Era uma estrela só minha, feita para mim, dos dentes brancos e lindos, dos cabelos castanhos, da pele lisa, do corpo quente e macio. Era a Vanessa da Mata me falando da “mulher macia den’da escuridão” pelos fones de ouvido e eu com a própria no meio colo, macia e perfumada, no meio da escuridão, numa chuva que não fazia bem pra ninguém, ainda mais pra uma moça nua e branca como a que estava ali. Caminhei pra casa carregando um peso que não parecia nada, como se fosse uma embalagem sem recheio, um corpo sem massa, sem matéria, só luz e beleza.

Mais tarde, bem depois, eu deitado no chão e aquele corpo de luz debaixo das cobertas na minha cama, tremendo loucamente de um frio que não existia para mim, mas que parecia aterrorizar as estrelas. Fui até a cama e ela me abraçou num instinto de proteção e medo misturados. Eu sentia sua força, sentia seu peso e sabia que agora era real. A luz diminuiu, o corpo branco se tornou bege, salmão e depois escureceu no breu junto comigo. Eram duas pessoas abraçadas agora, sem estrelas, sem luzes, sem mágica. Era o que era e fim, sem segredos.

“Qual é o seu nome?” perguntei. “Você”, ela respondeu. Dali pra frente nada mais foi igual e desde que conheci Você nunca mais encontrei mulher igual. E nem quero!

 

Coração de liquidificador

Junta 500 ml de leite semi-desnatado, três colheres de açúcar, cerejas a gosto, uma xícara bem servida de leite condensado, dois cubinhos de chocolate amargo, só pra dar a quebra, um coração partido, um nome macio de ouvir no escuro, umas duas ou três fotografias, coloridas, de preferência, um beijo de língua bem molhado e depois tampa. Bata na velocidade máxima, das que fazem o liquidificador quase pular pra longe. Deixe bater por, mais ou menos, três meses. Beba sem cerimônias!

Vai engolindo cada lembrança amarga, cada memória dolorida e sente o doce exagerado do resto dos ingredientes. Gostar de alguém é doce a ponto de dar ânsia, mas vicia e tem gosto de coisa que não dá pra comer uma só. Gostar de alguém é como comer pipoca. Você nunca vai parar de comer logo após mastigar o primeiro milho duro camuflado ali no meio da tigela. Vai doer o dente, vai se assustar com o estouro, vai ficar puto, mas vai continuar comendo outras, e outras e mais outras centenas de pipocas.

Dar o coração para alguém é mais ou menos por aí. A gente fica puto, dói, assusta, mas a gente nunca para. Aí a gente bota tudo num coquetel de coisas doces e engole as piores lembranças cuidadosamente cobertas e misturadas com sabores agradáveis e vai percebendo que o sofrimento de gostar também é doce. Sofrer por alguém é ruim como o inferno, mas tem seu prazer masoquista, seu sabor agridoce tão especial. Todo mundo um dia vai sentir o doce sabor do amargo da perda. Acontece com 100% dos seres humanos, mais cedo ou mais tarde.

Mas os caras são tudo uns imaturos filhos das putas! Não tão valendo um centavo. É um tal de esfolar o pau em qualquer buraco que não dá vontade de se apaixonar. Não existem companheiros, amigos, cúmplices, gente em quem se possa confiar. Não tem um que me passe segurança, que me mostre que o futuro ali vai ser diferente. São todos moleques com ereções que nunca terminam, comendo qualquer garota que aparece . Dá a impressão que nada é confiável, que nenhuma palavra é verdadeira e que depois que ele beijar meu pescoço, me arrancar uns arrepios e achar a chave do zíper da minha calça, nada mais de mim vai valer a pena. Não existe um pingo de respeito, nem um pingo de consideração. Encontram comigo no dia seguinte como se fossem amigos distantes e não se preocupam em parecerem gentis, ou ao menos respeitarem o que fizemos na noite anterior. Estão todos me olhando, estão todos rindo, ele contou pra todo mundo!

Mas as meninas são todas umas prostitutas! Não tão valendo um centavo. Num grupo de dez amigos a mesma menina já ficou com oito, está de casinho armado com mais um e o último é feio, se não teria pego também. E a história é diferente pra cada um, como uma atriz, uma falsária que nunca se comporta da mesma maneira e faz o jogo sempre diferente. Como é que você vai se apaixonar por uma menina que não sabe se quer só sexo, só amor, os dois de um cara só, nenhum dos dois de todos eles, porra nenhuma ou tudo junto. Jogam o discurso do sentimental desejo de fazer tudo certo e estragam meus sentimentos mais sinceros ficando com meus conhecidos, meus inimigos, desconhecidos anônimos e aparecendo macias, cheirosas e doces para perguntarem se eu estou bem. Eu não tô bem, tá todo mundo olhando pra mim, tá todo mundo rindo, ela já trepou com todo mundo!

É esse monte de coisa que fica amarga no fundo da garganta, que aperta o peito forte e faz com que as palavras comecem a sair meio truncadas, como soluços, como engasgos e tudo vai perdendo a razão de ser. Aí a gente vai pra cozinha, junta todos os ingredientes, tempera com um pouco de vodka, que é pra dar a liga, e joga o coração amargurado lá dentro. Faz o milagre da trituração e depois bebe tudo, meio litro de doçura e amargura na medida certa pra encher a forma de um coração novo, com histórias antigas pra servir de exemplo, mais preparado e maduro, mais ligeiro e agressivo. Pronto, está feito mais um coração pronto para ser entregue a alguém.

O problema é que toda vez que a gente bate mais um coração partido a gente acrescenta mais fotos, mais amargura, mais vodka, mais lembranças ruins e ele vai perdendo o vermelho tradicional junto com o sabor. O chocolate misturado com o músculo cinza e triste do velho coração vai tornando o caldo cada vez mais escuro e grosso, menos saboroso, mais amargo por natureza, menos doce, menos agradável, menos útil. Infelizmente as decepções amorosas estão nos tornando pessoas amargas e no futuro não muito distante todo mundo vai ter meio coração de cereja com leite condensado, meio vodka, papel, amargura e tristeza. A irresponsabilidade das pessoas com o sentimento alheio vai gerar um mundo de gente amarga e PhD em reconstruir corações com defeito.

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Bocas

Se tivesse coragem de dizer já teria dito. Mas não tinha. Não tinha porque era jovem ainda, sabia pouco do que o mundo tinha pra ensinar; seus amigos, igualmente jovens, também tinham pouco a dizer que pudesse iluminar uma brilhante ideia para mudar tudo. Era a pura inexperiência confrontando o desejo de fazer algo e estar petrificado no mesmo lugar. Era coisa de cara jovem, 20 e poucos anos de energia e insegurança guardados dentro do mesmo frasco. Fazia frio, ele era o cobertor. Fazia calor, ele era o vento. Fazia chuva, ele era o telhado. Fazia sol, ele era a praia. Só não era o que queria ser!

Ela lançava o olhar que só saia daqueles olhos e ele não tinha mais coragem de nada. Era uma hipnose consciente e tudo o que tinha de ser dito ia sumindo aos poucos, esvanecendo, virando pó misturado no monte de abraços e carinhos que camuflavam um monte de sentimentos bem maiores que nunca vieram à tona. Não falava que gostava, mas também não conseguia largá-la, nem deixar que outro ocupasse seu lugar, nem admitir que outra tentasse ocupar o lugar que reservara para ela tempos antes. Era imutável o desejo de ter para sempre uma menina que só estava presente quando achava que era hora de estar.

Era drama de homem, coisa séria, sólida, não tinha frufru nem lenga-lenga. Quando o homem se vê nessa situação, aficionado pela mesma mulher, aconteça o que acontecer, é história de amor que deve-se levar a sério. Acordava pensando em nada e antes de chegar até o banheiro para ver o rosto no espelho já estava lembrando dela. Qualquer coisa dela. Acordava, às vezes, lembrando que era linda. Outros dias, acordava odiando-a com todas as forças e desejando que se fodesse para sempre. Era a inconstância de ter que variar a abordagem do mesmo assunto todo dia. Aposto que, se pudesse, ele seria dela todo dia e não variaria nada nisso, nunca!

Trabalhava lembrando, dirigia lembrando, ouvia as músicas pensando, caminhava pensando, comia pensando, conversava com os outros pensando, via televisão pensando, fazia tudo pensando nela. Pensava o tempo todo um monte de coisas, de diversas cores e formatos, mas principalmente, se ela pensava nele tanto quanto ele pensava nela. Era o desejo eterno e contínuo de ter alguém, mas não qualquer uma. Era ela, tinha de ser, porque era a que fazia tudo ficar mais colorido, clareava a noite e turvava o céu do dia. Era o desconcerto em formato de menina.

Menina, sim, porque mesmo sendo mulherão, a idade e as feições não escondiam que tinha chegado ontem ao mundo. Ver a história de fora me fazia lembrar daquela música velha dos Paralamas que dizia assim: “Ela é só uma menina e eu deixando que ela faça o que bem quiser de mim”, porque era exatamente isso. Se ela dizia que precisava pensar, ele dava espaço e silêncio. Se ela dizia que se sentia triste, ele dava abraço, ouvido e calor. Se ela dizia que queria sumir, ele dava conselho, fazia de tudo para que não fosse, mas se fosse, ia buscar quando quisesse voltar pra casa. Era dela, a vida dele.

Mas eu também vi o segredo. Eu a vi fraquejar uma vez, uma única vez, quando tudo parecia problema, confusão, desapego e incerteza. Tem daqueles dramas de mulher que derrubam tudo, abalam as estruturas até de quem não tem nada a ver, e aconteceu. Ela chorou, se desesperou, perdeu a cabeça e correu pro único lugar onde se sentia segura, segura mesmo, de um jeito que ninguém, nem nada, podia mudar. Correu pra dentro de um abraço conhecido, pra dentro de um coração que sempre tinha reservado espaço pra mais um. Ela gostava de brincar de fingir que não sabia ser amada, mas já sabia que tinha seu amor.

De longe, olhando passivo, decidi soprar um pingo de tempero no almoço insosso desses dois. Eu seria a boca santa que espalharia a novidade que todo mundo já estava cansado de saber. “Ele gosta dela daquele jeito que ninguém derruba, sabe?”, eu dizia. Eu seria a boca negra que levaria o ciumes e a inveja aos ouvidos dos que não conseguem ver gente se acertando na vida. “Acho que tem tudo pra dar certo, sabe?”, eu dizia. Eu seria a boca voraz que engoliria qualquer tipo de comentário negativo, qualquer praga e mal agouro. “Ninguém tem que se meter com eles, sabe?”, eu dizia. Eu seria a boca no trombone para avisar a cidade, as luzes e as vielas que à noite o mundo ia chover gotas de amor do chão para o céu. Uma chuva ao contrário, diferente de tudo já visto, porque ele faria tudo diferente, e ela entenderia tudo diferente e toda a diferença seria um encaixe fino e preciso de gentes que vão ficar juntas. “Eu acho que de hoje ele fica com ela, sabe?”, eu dizia. Eu seria o par de bocas grudados no meio da rua silenciosa, no vento frio da hora já avançada, do beijo simples e sincero que acabaria com toda a espera inútil que a insegurança da gente jovem gerou. “Eu esperei muito tempo por isso”, ele vai dizer, sabe?

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Milagreiro

As vezes eu achava que ela forçava a barra para bancar a durona, outras sentia uma profunda angústia ao ouvi-la falar sobre as situações que vivera e que, se tivessem sido vividas por mim, seriam bem diferentes. Sentia, às vezes, como se ela fosse uma eterna caçadora de relíquias que ainda faltavam aparecer para tornarem as coisas mais bonitas e interessantes. Às vésperas de fazer 22 anos ela já tinha um bom carro, uma carreira estável, já tinha conhecido a maioria dos destinos turísticos da Europa, feito sexo, usado drogas e ficado bêbada.

Era como uma pessoa jovem que conquistou tudo rápido demais. Eu tinha vontade de entregar a ela um pouco do que eu tinha e ela não. Das coisas que não se compra, nem se encontram nos bolsos de casacos do inverno passado. Ela era tão especial para mim e, ao mesmo tempo, tão careta e convencional, igual a todo mundo. Eu me interessava por ela de maneira diferente. Não existiam outras pessoas que me ofereciam as possibilidades que ela me oferecia. Nas nossas conversas tão abertas e particulares eu sentia uma liberdade esquisita, como se ali, no momento em que estávamos dispostos a falar, tudo fosse permitido, nada fosse segredo e qualquer ideia tinha caráter complementar.

A amizade às vezes toma formatos estranhos. A gente reconhece o produto, mas fica difícil definir coisas com embalagens novas. Quando me dizia que era feliz eu não duvidava. Nenhuma vez em que me disse ser feliz e plenamente realizada eu duvidei. Eram raras, muito raras, a vezes em que eu duvidava dela por algum motivo. Ela também acreditava em mim cegamente. E mesmo que nunca tenha me dito isso assim, com essas palavras, eu sabia que a confiança que ela depositava em mim era maior do que muitas coisas fortes que ela já havia dado a outras pessoas, como atenção, amor, devoção e lealdade.

Certa vez, conversando sobre qualquer banalidade das nossas vidas normais, me esforcei ao máximo para tentar explicar o estranhamento que eu sentia a respeito de sermos tão sinceros um com o outro, confiarmos tanto um no outro, e não nos tocarmos nunca. “A gente não se encosta, você percebeu?”, eu disse. Ela foi percebendo que era verdade. Amigos que não se tocam, não pegam um no outro, não abraçam, não têm contatos físicos de nenhum tipo. Tentei desesperadamente explicar a ela o quanto aquilo era importante para mim, o quanto o toque me passava informações, sentimentos e energias indispensáveis às relações saudáveis entre pessoas. Acredito que ela nunca entendeu exatamente o que eu tentei dizer, mas captou a mensagem de que o toque é importante. Ao menos para mim.

Sinto que situações como essa só reforçam a minha crença de que nós temos uma missão conjunta. Poderia teorizar sobre qual é o objetivo dela comigo, o que a vida reservou para a atuação dela nos meus dias, mas não sei. Honestamente, não sei, não faço a menor ideia. Não sei onde é que ela entra na minha história, o que é que ela está fazendo, ou o que deveria fazer, ou se é que tem que fazer alguma coisa. Talvez a missão dela seja, simplesmente, ser a minha missão. Assim como esses objetivos são abstratos, minha ideia do que fazer também é vaga, mas sinto que conheço o caminho, mesmo sem saber exatamente o destino.

O dinheiro ela já tem. A autoconfiança também. Amor próprio também. Uma família, uma casa, uma carreira estável. Isso tudo já veio. Tem até beleza, para os que acham que é fundamental. Tem um cabelo que não demanda cuidados extremos e está sempre com um formato satisfatório. Um belo par de peitos que a gente dá mais valor quando é pivete do que quando cresce, mas que, ainda assim, chama a atenção. Tem 20 dedos, todos os dentes, nenhuma doença séria e é fisicamente capaz. Está tudo lindo, mas acho que falta o recheio do bolo.

Penso que ela não sente. Não tem sentimentos complexos como os seres humanos normais. Não me lembro de ouvir uma história onde ela realmente se magoou, ou chorou, ou teve um descontrole emocional daqueles de parecer que o mundo vai mesmo se acabar. É tudo tão controlado, tão estéril, que minha missão, penso eu, é entregar um pouco da minha emoção exagerada dentro dessa carapaça de sucesso e frieza. Acredito que a missão dela seja ser capaz de extrair meus melhores sentimentos, minhas melhores lágrimas e sorrisos, minhas palavras mais certeiras e fortes, e guardar tudo dentro de si, num coração que não serve para nada além de bombear sangue.

Somos complementares. Ela me entrega o controle, a matemática e o planejamento prévio. Em troca eu dou todas as minhas cores, minha plasticidade e fluidez. Ela, feminina, cheia de curvas, macia e perfumada com toda fêmea, é, na verdade, uma verdadeira fortaleza, um cubo de pedra, frio, inanimado e cinza, mas que cumpre sua função com precisão, solidez e eficiência. Eu, grosso, áspero, rústico, com pelos que circulam do meu rosto ao peito dos meus pés, quadrado, largo e rígido sou, na verdade, uma mistura complexa e mutante de cheiros, gostos, cores e sons. Eu sou o olhar, o sorriso e o timbre da voz. Sou a intuição e a intenção de matar. Sou o crime acidental, a morte passional e o incerto consentido.

Sendo assim, alimento minhas emoções de uma missão sem fim: realizar o milagre de transformar pedra em água!

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São meus jovens

É rabo preso, cagaço ou filha da putisse? É loucura, peito de pombo ou tendência suicida? Cerveja, vodca ou uísque? É pergunta séria de coisa importante pra quem sabe que a vida está além da conta bancária, do escritório e do diploma. Deixa meu celular tocar, quem eu quero que me ligue já está aqui. Essa minha juventude transviada cresce e continua com a mesma energia de antes. Graças! Se pudesse escolher, preferiria a eterna jovialidade e estupidez dos meus amigos à desejar-lhes maturidade e sabedoria às custas da morte. Não tivemos a chance de escolher, não vou reclamar, mas assumo que cultuo a juventude a plenos pulmões. Eu grito para que sejam jovens!

É rabo preso, cagaço ou filha da putisse? 

Tem quem perca a linha mesmo, fique maluco, com o showzinho das mulheres. Mas o fato é que no fim qualquer homem sabe que quem decide são elas. E aí você fica instigado, não entende os sinais, bebe um pouco além da conta, faz mil suposições absurdas e acaba achando que deu tudo errado antes mesmo de ter começado. Às vezes parece rabo preso, daquelas mocinhas infelizes que não desapegam do ex-namorado vilão nunca. O cara não vale um centavo, não dá valor, não liga, só fode com a vida, fala absurdos inimagináveis, mas a cada paulada, mais amado é. É da idade essa coisa de se apegar a um idiota imaturo, o futuro resolve isso!

Tem as cagonas. Têm medo de se apaixonar porque não se permitem correr riscos. Existe o medo da dor em todo tipo de amor, e geralmente o fim da história é cada um pra um canto e o peito apertado mesmo. Só que qual é a vantagem da vida de alguém que vive de maneira segura e controlada? Se jogar de cabeça na vida de alguém, se deixar levar por um plano alheio é das coisas mais emocionantes que podemos fazer por nós mesmos. Não temos nada a perder a não ser a cabeça, o coração e nossa própria dignidade. Mas tudo se recupera depois. Sofrer por amor é das coisas mais joviais que existem.

Tem as filhas das putas! São as jogadoras, as que traem, as que manipulam, as que tripudiam, as que sorriem e, geralmente, querem chorar. Não dá para saber se são ruins ou se são desligadas, mas saem arrasando corações no atacado, em fila e sem dó, para transformarem as tardes dos meninos em consultas de terapias de bar com cervejas demais, apertos demais, raiva demais e um pouco de insegurança amarrando tudo bem juntinho. Lidar com garotas filhas das putas é estar sempre na corda bamba mais caindo do que se equilibrando. Elas sofrem no futuro, a gente que é jovem já viu esse filme.

É loucura, peito de pombo ou tendência suicida?

Se as mulheres estão matando os corações dos meninos de rejeição e festinhas indesejadas, eles matam os corações alheios de susto, medo, pavor e desespero. Existem os tipos que nasceram para a loucura, dos que buscam problemas sem querer, se metem em enrascadas homéricas jurando não terem nada a ver com o fato. São os garotos problema que apanham e não sabem o motivo, vão presos e não sabem o motivo, se machucam e não sabem o motivo, machucam os outros e não sabem o motivo, mas no fundo são boa gente. São daquele tipo fascinante que costuma ter um ar selvagem contagiante que deixa qualquer calcinha molhada, mas que está mais preocupado em fazer um absurdo do que em conquistar um coração. No futuro eles tomam jeito, hoje são jovens demais pra isso.

Tem os que querem mostrar força. Vão de frente contra qualquer um, em qualquer situação, por qualquer motivo. Pau pra toda obra, aceita desde briga de acerto de contas até ajuda para desmontar peças de carro e arrebentar janelas abandonadas. É grande, rústico, fala alto, bebe muito, faz muita merda e, em quase todos os casos, guarda no peitoral definido um coração frágil e solitário que há anos espera a chance do beijo com a mesma menina, a mesma que o considera um grande amigo, e nada mais. Os grandes são os que descontam a frustração nos outros e se garantem o direito de serem felizes de cara fechada, parrudos, fiéis e honestos, mas sempre prontos para quebrar o mundo no meio para impressionar a mesma moça, a mesma de sempre, a que ele nunca vai ter. O tempo resolve isso, dá coragem, maturidade e texto suficiente para iniciar uma conversa com potencial para terminar em beijo.

Tem os suicidas. Dessa raça eu vivo cercado. Geralmente são os que dirigem, e bem. Se não dirigem, manuseiam coisas complexas, como motos, bombas, armas, metais cortantes ou drogas em excesso. São dos que não têm medo de morrer por confiarem demais nas próprias habilidades. São dos que todo mundo jura que se foderam, que sumiram porque bateram o carro, porque levaram um tiro, porque foram presos, mas estavam só dormindo até mais tarde. São o terror das mães, das mães das amigas, das mães dos amigos e das mocinhas que sonham em um dia serem mães de filhos que eles gerarão. São incompatíveis com qualquer atitude sensata ou planejada e quase tudo funciona à base do impulso, da proposta insana, da grande ideia que nunca vai dar certo e do desejo de ver o inédito acontecer. São eternos buscadores de emoções que o futuro vai tratar de trazer. Mas precisam sobreviver para isso!

Cerveja, vodca ou uísque?

Tem de tudo, qualquer um se sente em casa aqui. Vem, puxa uma cadeira, conversa meia hora que você já vai ser íntimo de metade deles. São os que estão por perto, ao toque do telefone, ao alcance das mãos. Meu coração e o deles se mistura e se estilhaça nessas nossas aventuras particulares. Todo mundo sofreu, sofre ou sofrerá por amor. Todos vão brigar ou se magoarem uns com os outros entre si e, mesmo com tudo jogando contra, a loucura e o brilho nos fazem ficar cada vez mais próximos. É a minha juventude tomando forma no corpo dos outros, dos que eu gosto de chamar de “semelhantes”. São meninas com a mágica do amor guardada na bolsinha da maquiagem e moleques com o dom da conquista apertado no bolso junto com o maço de Marlboro Light e o par de Jontex. São a minha vida juventude toda, só que hoje, aqui e agora!

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O silêncio

A ansiedade é responsável pela maioria das vezes que a gente odeia o silêncio. Esperar a palavra de alguém, uma resposta, um simples “oi” faz o silêncio passar de pacífica sensação de paz a terrível sensação de desespero. O silêncio é como uma bandeira de rejeição que não tem cor, nem mastro, nem pano, mas está lá, nítida e imponente, para que você saiba que ele existe. Ele é uma entidade, não uma situação.

A falta de comunicação vai tão além da falta de som que é possível ficar em silêncio no lugar mais barulhento que se pode imaginar. Quantas vezes não me senti extremamente incomodado com o silêncio de alguém enquanto meus ouvidos ardiam agoniados com barulho demais. Existe a falta de som e o silêncio. E acredite: eles não são equivalentes!

Esperar algo de alguém, uma comunicação banal que seja, gera o silêncio. Estar em um lugar sem nenhum som, nenhum barulho, nenhum nada ainda pode ser extremamente ruidoso e barulhento. Os olhos falam mais alto que qualquer garganta! As palavras gritam mais que qualquer desespero e o toque, o gesto delicado, revela mais informações do que a mais longa das conversas. A expectativa de receber esse tipo de comunicação é que gera o silêncio, a falta de som, não.

O silêncio é aquela sensação estranha de quando você escreve um bilhete e, ao invés de responder, a pessoa simplesmente guarda o papel e continua fazendo o que estava fazendo antes. Ou quando você manda uma mensagem de celular que levou meia hora pra ter coragem de escrever e a resposta nunca vem. Ou até quando você vê a tela do computador mostrando o chat só com a sua frase vazia na tela branca e mais nada, nem um “fulano está digitando uma mensagem…” para te acalmar. O silêncio tira a calma de qualquer um!

Também fica essa sensação estranha quando a despedida com beijo na boca vira um abraço com uma bochecha encostando na outra, sem lábio, sem sentimento, sem quase nenhuma intimidade. Acontece quando você segura a mão de alguém e ela não segura de volta, simplesmente deixa a mão ali para você carregar. São faltas de respostas, de atitudes, que geram o silêncio.

Essa nossa necessidade de ter uma resposta, de esperar do outro uma atitude específica, faz com que a vida pareça mais injusta, menos amável, menos macia. De que adianta ter amor, dar amor, ser feliz, ser sincero se, a qualquer momento, a reciprocidade acaba e de repente o mundo não é mais tão feliz, nem tão amável, nem tão sincero. A vida parece uma brincadeira de mal gosto quando se espera de alguém uma resposta que não vem, ou vem errada, ou truncada, ou oposta.

É como se esforçar para conquistar algo que, mais dia menos dia, não vai dar em lugar algum. É o morrer na praia sonhando com a vida nova, a escalada ao cume que está sempre encoberto por nuvens e nunca revela a verdadeira vista de lá de cima. É a expectativa crua, daquela que simplesmente nasce da esperança de algo acontecer, sem planos a longo prazo, sem estratégia, só querer e precisar.

Quando se quer a resposta certa, o gesto específico, a situação exata, o tempo para de passar. A espera se torna eterna, tudo se torna chato e sem razão, como se fosse mais fácil dormir do que esperar. É o silêncio que nos deixa assim, e quem o alimenta é a ansiedade de esperar do outro exatamente o que nós oferecemos. Quando percebi isso tudo cheguei à conclusão de que o dinheiro que vai, geralmente é bem maior do que o troco que volta e, mesmo assim, o produto ainda vale a pena. Vale a pena o silêncio!

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No escuro (neon)

No escuro tudo é forma, desenho e suspeita. Não dá para saber quem é quem, o que é tudo, nem onde vai indo a vida que se joga no meio das pessoas. As pistas de dança são perfeitos ringues de batalha de sentidos. Tem cheiro, mas não tem gosto, e tem tato, mas não tem visão e tudo se mistura numa multidão quente e abstrata. A escuridão foi feita para quem quer se encontrar.

A melhor música do mundo da última semana explodindo uma porção de micro partículas de poeira supensas no ar, um monte de gotas de suor voando e evaporando, perdigotos e fios de cabelo saltando em vôo livre em direção ao chão e um sem número de olhares perdidos sem destino certo, procurando um rosto que ainda não conhecem, um sorriso que não receberam, um olhar que não os olhou.

Tem alguém vindo! A multidão se balançando vai adaptando seu formato irregular a alguma coisa que vem se movendo, que atravessa a floresta de gentes e movimentos, que vai abrindo clareira, picadilha no meio de gente bêbada e vem vindo, está indo, estava indo, estava vindo e a encontrou. Não era uma caça, nem uma busca, mas sim o acaso fazendo seu papel, juntando o inusitado com o propício e apresentando o desejo a gente que antes não queria nada de ninguém.

Milhares de casais se juntam assim nas noites de sábado ao redor do mundo. Era sábado, estavam no mundo e estavam juntos. Não tinham nome porque não precisava perguntar, e não tinham amarras porque não precisava ter medo de mais nada. Foi um beijo daqueles que parecem um flash de susto para virarem poeira de imaginação no ar no segundo seguinte. Só que não viraram pó, nem imaginação, nem flash, nem luz. Ficaram grudados, babando de leve, roçando os lábios e as línguas, virando a cabeça de um lado pro outro com os corpos colados. Era um beijo de verdade, daqueles que é difícil de encontrar.

Sem luz, a vida não deu a eles o direito de se verem por inteiro, de perceberem suas linhas de expressão, suas delicadas marcas de vida, seus cabelos, dentes e cílios. A escuridão abraçou o momento de um jeito particular ali, naquele parzinho de gentes especiais se amando como num fim de mundo apocalíptico. Só que chegou o momento em que a matéria venceu o conceito, a imaginação e o absurdo. Precisavam se ver e, lindos como eram, não podiam perder tempo.

De repente o chão ficou macio, cada vez mais sutil e logo depois não havia chão algum. O beijo fazia-os girar lentamente no ar, flutuando a alguns centímetros de onde deveriam estar seus pés e o resto das pessoas, depois de algum tempo, começou a estranhar. O breu tentava esconder que o vôo absurdo era real e as pessoas tentavam desacreditar no que os olhos confirmavam. Ficaram suspensos no ar com as bocas coladas e um sorriso bagunçado perdido no meio das línguas e dos beijos delicados, sucções carinhosas e mordidas sutis.

Ela foi ficando cor de rosa, um rosa translúcido, um tom pink forte, brilhante e nítido rabiscado no corpo escuro, quase preto, que voava na sombra oscilante da multidão. Ele foi ficando azul, cada vez mais cintilante, mais inevitavelmente notável e sua pele fora tomada de um neon ciano difícil de encontrar na natureza. Começaram a brilhar no escuro da multidão, na floresta de gentes, e ninguém conseguia ignorar a beleza daquele encontro.

Era um beijo perfeito iluminado pela energia que sai de dentro da boca das pessoas e pinta o mundo inteiro ao redor de cores fáceis de apagar e serem repintadas, caso queiram. É aquele tipo de arrepio que vem da espinha quando existe mais do que contato físico no beijo com um estranho. Era o casal da perfeição casual, o exemplo da exceção da noite perdida, o absurdo impossível de duas gentes lindas e brilhantes, neon, fluorescentes coloridos e infinitos. Os dois eram o que havia de mais puro no que a gente chama de identificação imediata.

Eles brilhavam no escuro, voavam acima do chão, riam e beijavam um ao outro com a cumplicidade de uma vida inteira conquistada em poucos segundos. Eles eram lindos e eram eu e você!

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