Magro como a morte enrolada num pedaço de pele coberta de cor, seco, esquálido e honesto. As costelas no peito descoberto desenhavam a anatomia do homem que não recheou o corpo por passar tempo demais preenchendo a alma. Os pés largos e secos esmagando um par de chinelos Havaianas já bem gastos, daqueles que parecem uma folha de borracha.
As canelas finas, cambitos desafiando a gravidade, joelhos calejados de quem já tomou muito rodo da vida, um short de nylon bem vagabundo, chapiscado de tinta de parede, um umbigo profundo como o fim do mundo, em estômago vazio, um peitoral de peles grudadas em ossos sem carne nenhuma para disfarçar os contornos. Era uma obscenidade anatômica olhar aquela caixa torácica milimetricamente desenhada debaixo da pele parda de sol.
Aí os ombros eram outra pornografia da magreza, com ossos saltando para fora do esquadro, para cima e para os lados, suspendendo braços que pareciam galhos de uma árvore que já não bebe água há muito tempo. As duas varetas de gente meio estendidas pra cima, com os cotovelos meio dobrados, as mãos meio fechadas e os dedos indicadores apontando pro céu. As unhas amareladas e rústicas, os dedos calejados e finos, o pulso marcado e seco. Braço de gente que sabe do mundo.
O pescoço esticado, o queixo magro virado pro alto, os olhos apertados contra o sol e o rosto cheio de marcas de expressão, marcas do tempo, marcas de cortes, marca de gente que viveu pra caralho. Tinha já muita idade, apesar de ainda novo. Um bigode ralo, olhos fundos, pele escura e um olhar amarelo em direção ao além escondido no meio das nuvens. Era um cigarro que mantinha a boca fechada, se não fosse ele, abriria. Os dedos em riste, os punhos altos, o olhar no infinito e a prece recitada aos trancos e barrancos num poema mental.
“Pai do céu / que me protege e me guia / estica tua mão sobre mim / abençoa meus passos / me concede a graça divina / e eu, em troca / lhe concedo meu coração / minha alma / minha fidelidade / meu amor / e minha fé. / Você / que sabe tudo o que eu sei / me livra da dor da falta / do peito apertado / porque meu corpo já não aguenta mais. / Acredito em teu poder / ouço a tua voz / sinto teu toque e confio em ti. / Não me abandones / pois meu destino é teu!”
Ali, naquela laje, sobre aqueles chinelos, respirando aquele cigarro, nascia um herói. Não pela reza, nem pela pose de mártir da fé, mas porque sozinho, no máximo da sinceridade e devoção, escolheu dar seu coração para alguém que não conhece, nunca viu e nem veria, a continuar devotando seus sentimentos a uma moça que não sabia lhe dar reciprocidade. É o desespero de quem assiste um velho – como ele – se apaixonar por uma menina. É a certeza do fracasso e a esperança e torcida pelo inusitado. Não virou amor. Não ia virar. E a solidão fez casa de ferro no lombo dele, que foi envergando até ser obrigado a dar o coração por não ter mais força de carregar o peso todo!
Quando a tristeza de viver sozinho comeu a carne toda, a saúde toda, o brilho todo, sobrou o coração sozinho no salão de baile, petrificado e moribundo, fingindo estar dançando com um cabo de vassoura debaixo do globo de espelhos rodando lentinho ao som de uma música que ninguém mais podia ouvir. A coragem de assumir que era fracasso anunciado desde o começo arrepia o ser humano. Entender a derrota é mais nobre do que comemorar a conquista. Como disse Paulo, naquela música velha: “não dá, não deu, não daria de jeito nenhum”, e foi o que rolou. Não rolou! E depois disso, depois de dar o coração pro céu, pra Deus, pra sabe-se lá quem estava ouvindo, ele relaxou e morreu num último trago de Marlboro vermelho amassado.
Disseram amém, ele foi e nada mais aconteceu naquele dia.