Tinha uma francesa no metrô. Ela lia um livro em francês e estava sentada no banco da frente, aquele colocado na transversal, pintado de azul e reservado para pessoas com necessidades especiais. Eu estava preso na leitura de uma revista nova e não a vi chegar. Revistas, com suas páginas amplas, seu papel cheiroso e suas foto coloridas e envolventes sempre me desligam do mundo ao redor. Quando percebi ela já estava sentando. Uma sandália preta parecida com um chinelo de couro agarrada aos pés com as unhas pintadas de vermelho. Uma saia de um tecido estranho, marrom e fino, quase inexistente, com aspecto amassado, que subia das canelas até a cintura. Depois da saia, uma blusinha simples azul marinho com bolinhas brancas. Era uma francesa.
Digo que era francesa porque quando preciso escrever sobre mulheres europeias sempre penso nas francesas. Nunca fui à França, mas os filmes, as fotografias e as pessoas de descendência francesa me desenharam um padrão de mulher que fixou afixado na minha cabeça. Então, quando vejo alguém que se encaixa nesse padrão assumo naturalmente que sei de onde esse humano é. Ela tinha um anel de noivado na mão, ou algo que parecia ser um anel de noivado. Aprendi que anéis de pré-casamento são aqueles têm têm uma pedra disforme completamente alheia ao design do resto da joia. No caso, era, então, um anel desse tipo. Tinha as mãos magras, ossudas, e isso se repetia pelo resto da parte visível do corpo. Era uma moça magra, muito magra, mas com aquela flacidez característica das pessoas magras sem querer.
Tinha uma pele branca com pedaços ruborizados, róseos, e apresentava uma flacidez clássica de gente que nunca entrou numa quadra de esportes ou numa academia de ginástica. Tinha o pescoço comprido, uma cabeça de ângulos firmes e um cabelo loiro escuro. Estava preso num coque, o cabelo. A boca era seca, quase da mesma cor branca da pele, e uns dentes brancos comuns, de gente comum, que escova três vezes ao dia e nada além disso. Percebi seus dentes na hora em que um senhor de uns 70 anos muito alto e com uma barriga saliente se aproximou e ela perguntou se ele queria se sentar. “O senhor quer se sentar?” Não falou em francês, mas tinha uma voz francesa e, se você já assistiu filmes franceses sabe do que eu estou falando. O senhor se sentou, ela ficou de pé segurando e lendo seu livro francês cujo nome não consegui memorizar.
Olhando de baixo de vez em quando, percebi que seus olhos eram de um verde quase branco. Era daquele tipo de íris que tem uma cor aguada, sem vida, sem brilho. Ela toda era sem vida, sem brilho, comum, mas francesa. Tinha uma beleza suave, sutil, quase feia, mas isso não é importante. Na verdade nada era muito importante nessa moça francesa. Para mim ela valia alguma coisa mais porque era a personificação de muita coisa que eu já escrevi. Ela se movia como meus personagens, tinha a voz das minhas personagens, fazia coisas como meus personagens e era francesa porque eu queria que fosse, além do livro francês.
Quando me levantei, uma estação antes, para descer do metrô, fiquei ao seu lado. Olhei para ela e vi seus olhos fechados. Ela fechou os olhos para sentir a brisa do ar condicionado do metrô quando atinge sua velocidade máxima e venta no rosto dos passageiros. Tive certeza de que naqueles pouco segundos de pálpebras fechadas ela foi para outro lugar. Algum lugar menos brasileiro, menos comum, menos real. Deve ter saído da vida de todos nós para se misturar em alguma história minha, algum quarto sozinho, algum cigarro fumado às mágoas em noites mal dormidas. Era uma incrível personagem fictícia perdida no nosso mundo real. Assim que saí do vagão ela saiu junto, ao meu lado, mas quando olhei de novo ela já não estava mais. Talvez nunca tivesse existido, mas eu sei que havia uma francesa no metrô.