“Você tinha que ter vindo”, ela disse. Falou comigo ontem! Mas disse como quem diz que vai se atrasar dez minutos, ou como se fosse um recado de alguém desimportante que ligou. Fiquei pensativo quando ela me falou. A Ana é o tipo de garota que não fala coisas por educação ou para fazer social. Se ela disse que eu deveria ter ido, talvez daqui a pouco eu comece a me arrepender por não ter ido. Mas não, as coisas não são assim, a gente não tinha que ter ido. Eu não tinha que ter ido, você também não, o Zé também não. Concorda?
Mas ela disse uma porção de coisas depois. Disse que tava fazendo um calor do cacete, que vivia pelada o dia todo no meio dos pescadores, andando com a bunda branca fritando no sol quente e dando bom dia pras lavadeiras. Disse que tinha comido um peixe que tinha a carne azulada e o gosto era parecido com salmão, só que ao contrário. Me disse que conheceu um carinha chamado Sagu e eu dei risada, porque dá pra fazer um monte de piadas com esse nome. Ela disse que ele vive levando ela pra ver as coisas de cima das pedras, que fala do tempo, que diz se vai chover e se vai anoitecer, e quando, e como, e diz que vai ser melhor no dia seguinte. Doideira esses nativos que adotam gente de fora que chega sem saber nada.
“Tem uma cobra amarrada num galho dentro do meu quarto”, ela disse. Mas disse como quem diz que tem uma formiga andando sobre a mesa, ou que o cachorro tá dormindo no sofá da sala. Disse como se fosse qualquer coisa. Era um galho de goiabeira que cresceu pra dentro da casa e mandaram refazer a parede com o tronco dentro. O tronco entra no canto e sai no teto. E nesse pedaço de tronco que tem no quarto diz ela que tem uma cobra amarelada que fica enrolada o dia todo. Ela disse que não tem medo e, pensando bem, não me lembro da Ana ter tido medo de alguma coisa na vida. Mas agora acontece que Ana anda pelada, toma sol sem protetor e dorme com uma cobra amarrada no teto.
Ela disse que precisava ir. “A gente se fala daqui uns dias!” ela disse, mas disse como quem realmente ia falar depois de uns dias, depois de umas horas, que ia entrar no Face, mandar um e-mail, ligar pra cá. Disse que ia conhecer um lugar chamado Pedra do Pulo, que ficava na ponta da praia onde ela estava. Ela disse que o pico da pedra ficava acima das nuvens e que, pra chegar lá tinha que caminhar duas horas em uma trilha. Disse que tinha uns duzentos metros de altura e que as pessoas pulavam de lá, no mar, de cabeça, de braços abertos gritando “auêêêê” e a voz ia sumindo dos ouvidos de quem estava lá em cima e aparecendo nos ouvidos de quem estava lá na água. Eu temi pela Ana, mas ela sempre foi desses bichos livres, criados fora da gaiola longe do bando fazendo o que bem queria.
Mas eu fiquei pensando muito. “Você tinha que ter vindo”, ela disse, e eu fiquei confuso, meio com medo, tentando entender o motivo de ela ter dito isso. A gente tinha que ter ido? Você acha que a gente tinha que ter ido, cara? Eu, você e o Zé, a gente tinha que ter ido pra lá com a Ana, andar pelado com ela, dormir no quarto dela, pular da pedra que ela pula? Será, cara? Não sei não, acho que ela falou por falar, da boca pra fora, você não acha? Vou perguntar pra ela da próxima vez que a gente se falar.
– A Ana morreu, cara… a gente não tinha que ter ido!