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Você marcava minha vida!

A pasta de dente aberta no armário do banheiro; a escova enfiada no copo com as cerdas para baixo; o chão todo molhado fora do tapete, a tampa da privada abaixada; o chuveiro pingando com o registro mal fechado; uma calcinha encharcada pendurada nele; a toalha embolada sobre o trilho do box; uns bolos de cabelo enrolados na tampa do ralo; a porta entreaberta; e o cheio de creme hidratante. O quarto revirado; umas roupas jogadas no pé da cama; o carpete com marcas de pés molhados; a toalha molhada umedecendo o lençol; um sutiã pendurado no puxador da porta do armário; cheiro de desodorante de bambu; perfume de gente que viajou pra fora; meias de algodão encardidas na sola e um cinto de estrelas prateadas de metal. Você marcava minha casa inteira.

Uns fios de cabelo compridos presos no braço do sofá e nas almofadas; o controle da TV jogado no chão com as teclas para baixo e a tampa do compartimento de pilhas sumida sabe-sela onde; a tela mostrando algum programa idiota com o volume no mudo; a janela aberta com as cortinas balançando; umas folhas de árvore vindo de lá de fora; a cadeira fora do alcance da mesa; uns livros jogados pelo chão; uma revista de mulher pelada virando páginas descontrolada ao vento e um bolinho de papéis de bala 7 Belo no pé da poltrona. Uma bolsa vomitando coisinhas de mulher e cosméticos no corredor; uma calcinha preta mínima jogada no chão; um pé de chinelo na porta da cozinha e uma mancha de esmalte azul no carpete. Você marcava minha casa inteira.

A pia cheia de louça até a tampa; pratos sujos de chocolate derretido; copos de requeijão com cheiro de champanhe; garrafas e mais garrafas de bebidas sobre a bancada; suco de laranja esparramado pelo chão, cascas de frutas entupindo a tampa do lixo; a janela aberta, escancarada pra caralho; a geladeira zoneada; coisas abertas e apodrecendo no compartimento dos frios; farelo de bolacha e pão francês sobre a borda da pia e um pote de margarina cheio jogado dentro do saco de lixo reciclável. Uma garrafa de amaciante aberta derramando no tanque; a máquina de lavar com a tampa para cima; meia dúzia de roupas emboladas e sujas no fundo; o varal todo arrebentado; a escada de alumínio e a caixa de ferramentas jogadas no chão e um martelo jogado sobre a tábua de passar roupa. Você marcava minha casa inteira.

Mas o que ficou mesmo gravado, para mim, foi o dia que abri a porta do apartamento e encontrei você jogada no chão, toda vomitada no hall, na frente da porta do elevador, vestindo pantufas, calça de couro, jaqueta e sutiã. Seu cabelo fedia a leite azedo, suas mãos todas sujas de terra ou carvão, não sei, e seu rosto sujo de alguma coisa marrom difícil de definir. Eu lembro de ficar alguns segundos petrificado, te olhando, mas quando percebi que seu peito se mexia no ritmo de uma respiração percebi que não tinha sido dessa vez. Passei a chave na porta, pulei seu corpo largado e entrei no elevador pra ir trabalhar. A vida segue, você sabe, e tava foda arrumar a bagunça que você fazia. Mas as suas calcinhas eu guardei.

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Ela mora sozinha

A pia cheia, suja, uma porção de panelas amontoadas junto com canecas de café, o fundo seco, rançoso, fedido. A casa era quase um cenário de vídeo clipe de música moderna. Tudo meio cinza, nublado, colorido com um opaco quase cult. Na cozinha, ali onde eu estava, os objetos pareciam significar mais do que realmente eram. Uma xicrinha branca com a borda manchada de batom cor-de-rosa me dava mil ideias. Ao lado, meio amassado, um maço de Marlboro vermelho com três cigarros e um bic verde pequeno socados dentro. Um saco de polvilho vazio e amassado, cheio de farelos no fundo e ao redor. Que porra de pia, cacete!

A geladeira fedia, como era de se esperar naquele cenário. Mas não fedia a geladeira, ou a arroto, como de costume. Fedia a podre, como se alguma coisa animal estivesse morta ali dentro. Na porta, uma dúzia de ovos suspeitos me olhavam com descrédito e um deles, o da ponta, exibia uma generosa rachadura, de onde eu supus sair uma parte do cheiro horrível que emanava dali. Nas prateleiras uma caixa de leite que eu não quis nem encostar, um grupinho de potes de conservas bem feias e alguma coisa amarrada em uma sacola plástica. Nas prateleiras de baixo, mais ou menos a mesma coisa, e no fundo, no lugar onde as pessoas chamam de “gaveta das verduras”, diversas garrafas de bebida, todas meio bebidas, descansavam deitadas e felizes emanando um odor azedo característico.

O congelador não tinha muito para me oferecer. Era um refrigerador antigo, daqueles que nunca ouviram falar em “frostfree” e, ao puxar a porta superior, todo o refrigerador veio na minha direção. Congelado! Completamente congelado. Depois de insistir um pouco, consegui abrir e vi alguns pedaços de carne vermelha e frango completamente envoltos por uma fina camada de gelo, quase como neve, cercados por paredes de gelo que ultrapassavam os 10 cm de espessura. A lâmpada que iluminava o compartimento simplesmente não existia, o gelo tinha quebrado, congelado e apagado há muito tempo.

A mesa estava cheia de sacos de pão marrons. Uns 40, no mínimo, sem brincadeira. Era uma montanha de sacos, a maioria com um pão só dentro. Eram pães metamorfoseados, já tinham deixado de servir de alimento há muitos dias e agora poderiam incorporar algum tipo de tacape indígena, munição de estilingue e até, quem sabe, reforço para os dentes de diamante de uma perfuratriz de metrô. Eram duros como mármore, nocivos até mesmo para os dentes de um tubarão, imagina para um ser humano. Soterrada sob os sacos, uma fruteira vazia de frutas, com algumas contas, papéis, clipes, fósforos queimados, um durex, um anel, um elástico de dinheiro e uma pilha Rayovac vazando.

Eu, pelado, recém acordado, olhava ao meu redor, vendo cortinas e vidros podres, enferrujados e comidos pelo tempo, não entendia direito como as coisas chegavam naquele estado. Mais para frente o fogão exibia uma camada de molho de tomate seca tão bem encrustada que por alguns segundos pensei ser uma customização feita com tinta. Era um lixão em formato de casa. Tinha cheiro de coisa viva morando e morrendo debaixo de alguma outra coisa escura e úmida. Era nojento, triste, desencorajador e insalubre. Quando, de repente, ouvi o som de pés caminhando pelo chão duro, batendo calcanhares e quando olhei ela estava vindo na minha direção com o cabelo bagunçado mais lindo do mundo, um sorriso desconcertado e a minha camiseta, que no corpo dela parecia um vestido fora de moda.

Ela parou na entrada do cômodo, me olhou, eu abri os braços de leve, como quem pergunta o que está acontecendo e ela disse que a “moça que limpa” tinha faltado e aquela bagunça era de uns 5 dias. Percebi que ela realmente achava que iria me convencer com aquilo, mas a sujeira, o cheiro e o lixo estavam ali há, no mínimo, meses. Um par de meses. Meus pés parados no chão de piso branco, gelado, meu pau amolecido e envergonhado, meu umbigo apontando para o dela e ao redor o universo de uma casa degradada por uma garota que mora sozinha. “Eu achava que mulheres morando sozinhas eram sempre organizadas”, disparei, quase séria. Ela sorriu tímida e finalizou a conversa: “é, tá um pouco ruim… mas eu vou dar uma geral. Só não usa o banheiro, ok?” e eu ri, porque não consegui imaginar o que tinha dentro dele. No fim das contas a gente viveu mais 2 anos na mesma bagunça, sem lavar um copo sequer!

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