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Pós-festa

As paredes com marcas de mãos sujas, o chão grudento e encardido, mesmo nas partes onde havia carpete no lugar de piso. Os copos de plástico jogados pelo jardim e pela sacada, garrafas boiando na piscina e pedaços de papel impossíveis jogados por todos os cantos. Tinham rasgado a cortininha da janela da cozinha e uma das cadeiras estava só com três pernas. A quarta, pelo estado pontiagudo da madeira, tinha sido arrancada com violência. Na árvore, quase como uma cena de filme adolescente americano, uns dez rolos de papel higiênico se cruzavam e enrolavam nas folhas. Eu não fazia a menor ideia de como faria para limpar aquilo, nem de onde tinha saído tanto papel. Será que as pessoas levam rolos de papel nas bolsas e mochilas quando vão para alguma festa, só para o caso de ter uma árvore dando sopa por perto?

A sala estava fedendo a vinho azedo. O tapete estava manchado de amarelo na ponta e, pelo cheiro, estava mais para vômito do que para bebida. O sofá estava ligeiramente deslocado do eixo e uma porção de copos e garrafinhas de vidro ocupavam os móveis, a estante, o entorno da televisão e uma parte do chão. O lavabo de baixo tinha vômito pra todo lado. Alguém passou bastante dos limites e conseguiu vomitar próximo ao teto ao redor do batente da porta, pelo lado de dentro. Se não fosse minha casa eu daria parabéns pela façanha. A pia estava tomada por uma pasta cor de salmão, seca, fosca e fedorenta. A privada não estava muito diferente e o chão de piso branco parecia ter sido frequentado por alguém carregando um pincel de tinta preta pingando sem parar. Como as pessoas conseguem sujar tanto os sapatos em uma festa?

Subindo as escadas os pés disputavam espaços nos degraus com copos e garrafas. No topo havia um frasco de perfume vazio, aquilo me perturbou um pouco, mesmo sem saber o motivo. O corredor repetia o roteiro de garrafas, frascos, copos, latas, coisas que sujam, mãos pretas nas paredes e líquidos sem identidade absorvidos e espalhados por todos os lados. O quarto dos meus pais não abriu quando forcei a maçaneta: bom sinal. Achei que nem estando trancado ele seria poupado. O banheiro do corredor de cima estava um pouco melhor que o de baixo. Estava sujo, bagunçado e a porta de plástico duro do box estava com uma rachadura enorme, mas não fedia a vômito. A tampa da privada estava torta e o cesto de lixo estava povoado por uma montanha de papéis, além de umas três ou quatro camisinhas. Sexo no banheiro da festa, que original. Uma das camisinhas no lixo era vermelha, estava amarrada na boca e eu fiquei pensando: quem, hoje em dia, ainda se preocupa em dar o nó para a camisinha não vazar no lixo? E quem é que comprava camisinha com sabor? Afinal, ainda tinha gente que chupava os outros com camisinha?

No final do corredor meu quarto estava do jeito que eu deixei quando acordei. A cama meio bagunçada, as persianas fechadas desenhando listras perfeitas no chão e os objetos mais ou menos no lugar. Meu quarto se salvou da destruição em massa que o resto da casa enfrentou na noite anterior. Saiu quase ileso, na verdade. O jardim, com um pouco de música, um bom café da manhã e disposição eu conseguiria limpar em umas três horas. A cozinha, em um pouco menos de tempo. A sala e o banheiro, com dedicação, não levariam nem sequer uma hora. Recolher os copos e garrafas levaria uns trinta minutos, no máximo, e as tapeçarias e coisas quebradas eram facilmente laváveis na lavandeira da esquina ou trocáveis, sem grandes gastos. Eu conseguiria arrumar a casa inteira com uma dose extra de força de vontade, mas não fazia a menor ideia de onde eu ia tirar coragem de lavar o cheiro do seu perfume que ficou impregnado no meu travesseiro. Essa questão eu ainda não resolvi.

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Você marcava minha vida!

A pasta de dente aberta no armário do banheiro; a escova enfiada no copo com as cerdas para baixo; o chão todo molhado fora do tapete, a tampa da privada abaixada; o chuveiro pingando com o registro mal fechado; uma calcinha encharcada pendurada nele; a toalha embolada sobre o trilho do box; uns bolos de cabelo enrolados na tampa do ralo; a porta entreaberta; e o cheio de creme hidratante. O quarto revirado; umas roupas jogadas no pé da cama; o carpete com marcas de pés molhados; a toalha molhada umedecendo o lençol; um sutiã pendurado no puxador da porta do armário; cheiro de desodorante de bambu; perfume de gente que viajou pra fora; meias de algodão encardidas na sola e um cinto de estrelas prateadas de metal. Você marcava minha casa inteira.

Uns fios de cabelo compridos presos no braço do sofá e nas almofadas; o controle da TV jogado no chão com as teclas para baixo e a tampa do compartimento de pilhas sumida sabe-sela onde; a tela mostrando algum programa idiota com o volume no mudo; a janela aberta com as cortinas balançando; umas folhas de árvore vindo de lá de fora; a cadeira fora do alcance da mesa; uns livros jogados pelo chão; uma revista de mulher pelada virando páginas descontrolada ao vento e um bolinho de papéis de bala 7 Belo no pé da poltrona. Uma bolsa vomitando coisinhas de mulher e cosméticos no corredor; uma calcinha preta mínima jogada no chão; um pé de chinelo na porta da cozinha e uma mancha de esmalte azul no carpete. Você marcava minha casa inteira.

A pia cheia de louça até a tampa; pratos sujos de chocolate derretido; copos de requeijão com cheiro de champanhe; garrafas e mais garrafas de bebidas sobre a bancada; suco de laranja esparramado pelo chão, cascas de frutas entupindo a tampa do lixo; a janela aberta, escancarada pra caralho; a geladeira zoneada; coisas abertas e apodrecendo no compartimento dos frios; farelo de bolacha e pão francês sobre a borda da pia e um pote de margarina cheio jogado dentro do saco de lixo reciclável. Uma garrafa de amaciante aberta derramando no tanque; a máquina de lavar com a tampa para cima; meia dúzia de roupas emboladas e sujas no fundo; o varal todo arrebentado; a escada de alumínio e a caixa de ferramentas jogadas no chão e um martelo jogado sobre a tábua de passar roupa. Você marcava minha casa inteira.

Mas o que ficou mesmo gravado, para mim, foi o dia que abri a porta do apartamento e encontrei você jogada no chão, toda vomitada no hall, na frente da porta do elevador, vestindo pantufas, calça de couro, jaqueta e sutiã. Seu cabelo fedia a leite azedo, suas mãos todas sujas de terra ou carvão, não sei, e seu rosto sujo de alguma coisa marrom difícil de definir. Eu lembro de ficar alguns segundos petrificado, te olhando, mas quando percebi que seu peito se mexia no ritmo de uma respiração percebi que não tinha sido dessa vez. Passei a chave na porta, pulei seu corpo largado e entrei no elevador pra ir trabalhar. A vida segue, você sabe, e tava foda arrumar a bagunça que você fazia. Mas as suas calcinhas eu guardei.

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Ela mora sozinha

A pia cheia, suja, uma porção de panelas amontoadas junto com canecas de café, o fundo seco, rançoso, fedido. A casa era quase um cenário de vídeo clipe de música moderna. Tudo meio cinza, nublado, colorido com um opaco quase cult. Na cozinha, ali onde eu estava, os objetos pareciam significar mais do que realmente eram. Uma xicrinha branca com a borda manchada de batom cor-de-rosa me dava mil ideias. Ao lado, meio amassado, um maço de Marlboro vermelho com três cigarros e um bic verde pequeno socados dentro. Um saco de polvilho vazio e amassado, cheio de farelos no fundo e ao redor. Que porra de pia, cacete!

A geladeira fedia, como era de se esperar naquele cenário. Mas não fedia a geladeira, ou a arroto, como de costume. Fedia a podre, como se alguma coisa animal estivesse morta ali dentro. Na porta, uma dúzia de ovos suspeitos me olhavam com descrédito e um deles, o da ponta, exibia uma generosa rachadura, de onde eu supus sair uma parte do cheiro horrível que emanava dali. Nas prateleiras uma caixa de leite que eu não quis nem encostar, um grupinho de potes de conservas bem feias e alguma coisa amarrada em uma sacola plástica. Nas prateleiras de baixo, mais ou menos a mesma coisa, e no fundo, no lugar onde as pessoas chamam de “gaveta das verduras”, diversas garrafas de bebida, todas meio bebidas, descansavam deitadas e felizes emanando um odor azedo característico.

O congelador não tinha muito para me oferecer. Era um refrigerador antigo, daqueles que nunca ouviram falar em “frostfree” e, ao puxar a porta superior, todo o refrigerador veio na minha direção. Congelado! Completamente congelado. Depois de insistir um pouco, consegui abrir e vi alguns pedaços de carne vermelha e frango completamente envoltos por uma fina camada de gelo, quase como neve, cercados por paredes de gelo que ultrapassavam os 10 cm de espessura. A lâmpada que iluminava o compartimento simplesmente não existia, o gelo tinha quebrado, congelado e apagado há muito tempo.

A mesa estava cheia de sacos de pão marrons. Uns 40, no mínimo, sem brincadeira. Era uma montanha de sacos, a maioria com um pão só dentro. Eram pães metamorfoseados, já tinham deixado de servir de alimento há muitos dias e agora poderiam incorporar algum tipo de tacape indígena, munição de estilingue e até, quem sabe, reforço para os dentes de diamante de uma perfuratriz de metrô. Eram duros como mármore, nocivos até mesmo para os dentes de um tubarão, imagina para um ser humano. Soterrada sob os sacos, uma fruteira vazia de frutas, com algumas contas, papéis, clipes, fósforos queimados, um durex, um anel, um elástico de dinheiro e uma pilha Rayovac vazando.

Eu, pelado, recém acordado, olhava ao meu redor, vendo cortinas e vidros podres, enferrujados e comidos pelo tempo, não entendia direito como as coisas chegavam naquele estado. Mais para frente o fogão exibia uma camada de molho de tomate seca tão bem encrustada que por alguns segundos pensei ser uma customização feita com tinta. Era um lixão em formato de casa. Tinha cheiro de coisa viva morando e morrendo debaixo de alguma outra coisa escura e úmida. Era nojento, triste, desencorajador e insalubre. Quando, de repente, ouvi o som de pés caminhando pelo chão duro, batendo calcanhares e quando olhei ela estava vindo na minha direção com o cabelo bagunçado mais lindo do mundo, um sorriso desconcertado e a minha camiseta, que no corpo dela parecia um vestido fora de moda.

Ela parou na entrada do cômodo, me olhou, eu abri os braços de leve, como quem pergunta o que está acontecendo e ela disse que a “moça que limpa” tinha faltado e aquela bagunça era de uns 5 dias. Percebi que ela realmente achava que iria me convencer com aquilo, mas a sujeira, o cheiro e o lixo estavam ali há, no mínimo, meses. Um par de meses. Meus pés parados no chão de piso branco, gelado, meu pau amolecido e envergonhado, meu umbigo apontando para o dela e ao redor o universo de uma casa degradada por uma garota que mora sozinha. “Eu achava que mulheres morando sozinhas eram sempre organizadas”, disparei, quase séria. Ela sorriu tímida e finalizou a conversa: “é, tá um pouco ruim… mas eu vou dar uma geral. Só não usa o banheiro, ok?” e eu ri, porque não consegui imaginar o que tinha dentro dele. No fim das contas a gente viveu mais 2 anos na mesma bagunça, sem lavar um copo sequer!

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A festa

Da rua já dava para ver a sala toda acesa, com as cortinas amareladas na luz da lâmpada quente e umas sombras zanzando, um pessoal segurando coisas e tudo mais. Festa em casa. Abri o portãozinho da rua, daqueles baixinhos que só servem de enfeite, porque qualquer criança de menos de 1 ano de idade já seria capaz de abrir ou pular por cima sem muita dificuldade. Abri a porta e a primeira coisa que vi foi o panetone de 5 kg na mesa da sala, com uma vela de macumba fincada bem no meio, quase como uma estaca, e um senhorzinho de uns 250 anos sentado logo atrás daquele conjunto bizarro, esperando momento de acenderem o pavio.

Todos me olharam com uma cara estranha, como se eu tivesse chegado bem no meio de alguma coisa muito importante, mas logo voltaram a se concentrar na mesa de docinhos, quitutes e o puta panetone gigante no centro. A vela era vermelha da metade para baixo, preta da metade para cima e eu, por pura falta de vocabulário, paciência e conhecimento, repeti para mim mesmo, mentalmente: “isso é uma vela de macumba enfiada num panetone de Itu”, e saí da sala. Não fazia a menor ideia de quem era aquele senhor muito muito muito velho, mas meu avô não era, esse já morreu.

Cheguei na cozinha e tive aquela estranha sensação de estar sendo confundido com alguém, ou de ser reconhecido por alguém que te “carregou no colo” e agora não pode acreditar que você já tem pelos na cara, debaixo do braço, no saco, e ganha dinheiro trabalhando em algum lugar honesto. Uma mulher de cabelos pretos cacheados, tipo permanente dos anos 80, bem gordinha, daquelas que, segundo o médico, deveriam pesar 50 kg, mas estão beirando os 90 kg, me abraçou bem forte. Tinha aqueles braços de moças polenteiras, que ficam com os bíceps parecendo rochas e os tríceps parecendo uma rede de descanso pendurada em pilastras próximas demais.

Reencontrar parentes que você não lembrava ou não sabia que tinha é sempre um momento esquisito. Era sexta-feira, eu tinha acabado de chegar do trabalho e, de repente, estava rolando um aniversário suspeito com um monte de parentes desconhecidos e eu pude fazer toda essa análise do cenário enquanto era apertado pela moça gordinha. Na boa, cadê a minha mãe nessa porra? A gorda disse que eu cresci, disse que eu estava bonito, disse que não me via há muito tempo e depois chamou o marido, que me deu um aperto de mão mais forte do que o necessário, balançou meu braço mais forte do que o necessário e me disse que tinha me carregado no colo, mas que eu não ia lembrar. O casal, ela muito gorda, ele quase um palito de tão magro, estavam nitidamente alcoolizados e as outras pessoas na cozinha me olhavam com certo ar de vergonha e constrangimento.

Eu estava varado. Entrei no trabalho às 14h da quinta-feira e saí às 19h da sexta. Não estava raciocinando bem, não entendia o evento e nem conhecia as pessoas. De repente percebi que no rádio tocava o CD novo do Lulu Santos, só com versões do Roberto e do Erasmo e, por um segundo, senti uma nostalgia mórbida entrar por dentro do meu nariz. A casa tinha cheiro de leite de rosas. Subi as escadas e ao tentar entrar no meu quarto a porta estava trancada. Bati grosseiramente com a lateral do punho fechada e ouvi duas vozes femininas dizendo que já estavam quase prontas. Ótimo, minha mãe deve ter dado meu quarto pra alguém se fantasiar de gente bonita. O quarto dela também estava trancado, mas eu não precisei ser muito inteligente ou bater na porta para sacar o que estava rolando. Sexo!

Eu conhecia o som das molas da cama da minha mãe, já tinha transado naquela cama inúmeras vezes durante as viagens dela e, definitivamente, alguém estava mandando ver. Torci para não ser ela, mas a voz era realmente diferente. O cara dizia coisas como “quem é o pai? Fala pra mim quem é o pai aqui?” e a mulher respondia com a voz falhada e muito aguda, “é vocêêêêêêêíííííííííííííííí” como uma chaleira com a água já fervida. Vish. Saí dali sem questionar muita coisa. Quando desci as escadas todo mundo estava cantando parabéns. Mas era uma versão gringa. Não sabia se estava ouvindo direito, mas parecia alguma coisa europeia, um parabéns em russo, ou polonês, ou húngaro, mas no ritmo do parabéns brasileiro. Estava realmente complicado para mim.

O vovô agora usava óculos de sol e batia palmas e eu previa que a mão dele cairia a qualquer momento, mas não aconteceu. Quando ele finalmente soprou a vela, ao invés de a chama apagar, fez-se uma labareda colossal dentro da sala, como aquelas dos malabaristas de fogo, que foi ovacionada com muitos assovios, palmas e gritos, seguidos de um coral que batia palmas ritmadas gritando “dra-gão, dra-gão, dra-gão” e eu já não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Cadê minha mãe nessa porra? Fui procurá-la no quintal do fundo e tinha uma galera um pouco mais velha que eu tomando cerveja e comendo frango, um frango assado, estranhamente equilibrado num prato sobre uma baqueta de madeira muito bamba. Eles comiam com a mão e o tempo todos as garrafas pareciam escorregar. Um rapaz com fiapos de frango preso na barba me perguntou, ainda de boca cheia: “quer frango, brother?” e eu apenas saí.

Atravessei a cozinha onde o casal gordinho bebia shots de álcool Zulu 46% num copo de requeijão, passei pela sala onde agora todos dançavam em casais as músicas românticas do Roberto Carlos na voz carioca do Lulu Santos, e cheguei de volta até a frente da casa, onde o silêncio da rua parecia quase um milagre. De repente vi minha mãe, do outro lado da rua, no portão, conversando com uma amiga. Ela estava na nossa casa o tempo todo, mas eu não.

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Bom era na nossa época!

A gente caminhava muito, o tempo todo, como se fosse obrigatório marcar o ponto de encontro em um local a quilômetros de distância de onde precisávamos ir. Mesmo longe, caminhávamos rápido, aproveitando o máximo da nossa juventude, dos músculos novos, dos ossos duros como pedras. Hoje, lembrando, tudo parece um nostálgico e cinematográfico slowmotion. Mas lá, na hora, era tudo muito efusivo, muito rápido.

As meninas com as batatas das pernas duras, subindo as ladeiras de sneakers e sapatilhas, com as polpas das bundas fugindo por baixo das saias e os cabelos tão leves, voando com o vento dos carros, o sopro da noite e o caminhar. Eram as criaturas mais encantadoras que eu conhecia. Muito lindas, muito lindas mesmo. Os rostos davam a sensação de que a vida era aquilo ali, ficar ao lado delas, estar com elas. Tinham perfumes com cheiro de tesão, cheiro de sacanagem pura, por diversão. A gente respirava o mesmo ar e nem os cigarros em riste nos dedos finos apagavam aqueles cheiros.

Os caras – me incluo nessa – sempre de calças jeans, todos usando Nike ou All Start nos pés, porque era pra usar, como uma regra implícita não discutível ou negociável. A gente caminhava com o peito cheio, as vezes com as mãos nos bolsos das jaquetas, como se fossemos perigosos, como se fossemos alguém. Ninguém nos via, eramos quase invisíveis perto daquelas meninas, mas para elas, brilhávamos como um Sol na meia-noite. Chamávamos atenção delas, elas chamavam nossa atenção e rindo muito, todos, juntos, falando alto e mostrando os dentes, a gente cortava a noite.

Não tinha copo algum. Afinal, quem carrega copos em uma travessia quase épica por cruzamentos, avenidas, semáforos quebrados e gente dirigindo com pressa? A razão da distribuição das bebidas era sempre de 1/3 do grupo. Se estávamos em seis, tinha duas garrafas, e o gargalo era nosso recipiente. Nunca latas. Nunca copos. Nunca misturas. Carregávamos o litro de vodca sem tampa para nos forçar a não deixar nada para trás. Não existia a opção de “guardar para depois”, porque o depois não fazia parte dos planos. Era sempre o agora, o já. A gente bebia demais.

Entrávamos por portas estreitas, com luzes coloridas, cada dia de uma cor, cada noite um corredor novo, cada noite uma aventura diferente. As festas nunca eram triviais, com gente comum em ambientes agradáveis. A gente tomou chuva, algumas vezes. Tomou tombo em outras. Tomamos choque em muitas. Era sempre uma aventura e sangrar um pouco fazia parte do pagamento para ser feliz. Eu não me drogava porque não dava tempo, já estava mais bêbado que um gambá antes mesmo da coisa começar a ferver, mas as meninas todas cheiravam. Os caras, alguns cheiravam, outros fumavam maconha, uns poucos tinham ácido. Era raro na época. Mas todo mundo bebia horrores. Ninguém era careta.

A gente dançava o que tivesse tocando, se apertava em diferentes combinações, as vezes transava, as vezes beijava, as vezes ficava só olhando. Ninguém tinha dono, ninguém sabia nada de monogamia, ninguém queria se prender. As meninas todas eram umas gostosas, a gente ficava maluco e elas sabiam disso. Os caras, uma porrada de cara meio magrelo, meio bolachudo, com as roupas com problemas de proporção e se sentindo homens. No fundo elas não sabiam o que estavam fazendo e a gente não sabia o que fazer com o resto. Mas a gente se divertia mesmo assim.

Depois de muito tempo, quando a noite já estava virando fim de madrugada, no meio do frio, a gente decidia que era hora de ir embora. “O ônibus volta a passar às 5h”, era frase religiosa para todo mundo. Ninguém tinha carro, ninguém tinha carta de motorista. Na verdade, nem isso, nem idade para tanto. A gente voltava abraçados aos pares, muito loucos, arremessando garrafas no meio das ruas vazias e silenciosas. Só pra ouvir o estalo do vidro no asfalto. Agora sim tínhamos copos, porque ninguém tinha vergonha de roubar das festas, das casas ou dos raros bares que a gente ia. “Copo foi feito para se levar do rolê pra casa, não o contrário”, dizíamos. Tocávamos campainhas quando havia casa, tocávamos interfones para acordar porteiros, tocávamos o terror à nossa maneira meio boba e infantil de viver.

Hoje o povo briga uns com os outros porque pegou o carro bêbado, porque não respondeu no WhatsApp, porque ficou olhando pra mina do outro cara. O pessoal se aperta dentro de roupinhas bonitas e se joga em filas com revista de segurança, cartão e comanda, consumação mínima, camarotes e listas VIP. Hoje o pessoal quer conseguir levar para o motel, quer comprar bebida cara e se sentir o rei do mundo segurando taça. Hoje o pessoal tem a Kesha, Lana Del Rey, Amy Winehouse e Rihanna, mas não presta atenção nas letras, não aprende nada sobre como a vida/festa/noite deve ser. Hoje a gente diz que se diverte, que fica muito louco, que passa dos limites, mas é tudo uma porção de merdas controladas e sem a menor graça. Bom mesmo era na nossa época, 17 anos de vida, quando a gente fazia tudo isso e ainda era quinta-feira.

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O circo no quarto

Por cima dos móveis da sala só copos, latas, garrafas e lixo. Lixo de festa, papéis estranhos, coisas amassadas, embalagens, e sujeira esparsa, acumulada, enfeiando a decoração. Cervejas, vodcas, combinados, vinhos, espumantes, frizantes, algumas solitárias garrafas d’água e uma ou duas latas de Coca-Cola. Da vermelha, com açúcar, pra misturar a vida, a noite, tudo num copo só e mandar para dentro. O tapete meio jogado no canto, o chão de madeira riscado de salto, de vidro quebrado, de pista de dança improvisada em festa sem controle.

No corredor pro quarto o aparador estava cheio de nada. Tudo que tinha em cima foi embora. Ou tiraram, ou caiu e se misturou com o resto da bagunça, não se sabe. Dois pés de ferro ligados a um tampo de vidro fixado na parede, manchas arredondadas de líquidos secos e sujeira. Na porta da frente, o lavabo, uma marca de mão suja no meio do batente. Suja de alguma coisa marrom, ou vermelha. Vinho, sangue, terra, tanto faz. Passou ali e deixou a marca. Passando pela porta uma montanha de papéis empilhados no cento de lixo, uma pia um pouco vomitadinha, assim, no canto, de leve, de bêbado que tentou lavar a merda mas não teve muito empenho.

Mais pra frente, na segunda porta, o quarto de hospedes. Acabado. A cama de solteiro está só o estrado, com o lençol todo embolado num canto, o colchão meio em baixo, meio em cima da armação e uma porção de objetos aleatórios no chão. O controle da TV, um cinzeiro virado, alguns porta retratos com fotos de viagens minhas, um monte de flores de plástico, uma furadeira sem broca, alguns copos, latas e uma bolsa de mulher que não me animei a investigar. Na parede, inusitadatamente bem escrito, numa caligrafia feminina, delicada, feita a batom cor de rosa, um recado. “Fui chupada aqui” e uma seta apontando para a cama sem colchão. Bom pra ela, acho.

Lá no fundo do corredor a porta do quarto, do meu quarto. Dentro, um cômodo nitidamente mais organizado que o resto da casa. A cama, de casal, está pelada, com o colchão sem lençol, cobertor ou coisa que a cubra. No chão um par de sutiãs de cores diferentes, um vestido, um pedaço de pano retorcido que adivinhei ser uma calcinha minúscula e o resto até que estava inteiro. O telefone do criado mudo foi para o chão, o abajour estava milagrosamente inteiro, nada escrito na parede, umas três ou quatro garrafas perto da parede, copos e um par de pernas jogadas do outro lado, depois da cama. Fui até lá e um corpo de mulher jovem dormia jogado entre o edredom que deveria estar sobre a cama.

“Bom dia”, desejei a ela, que estava acordando com a minha presença. A voz saiu rouca, grave, seca e o copo d’água na minha mão era um sinal de que o corpo precisava descansar. Ela se virou para mim, com os cabelos escuros grudados na cara, bagunçados e sem formato e percebeu que estava sem roupa nenhuma. Se cobriu assustada, me olhou de novo, olhou para o quarto, ao redor, para si mesma e perguntou da outra. “Foi embora, deixou um sutiã e você…”, e sorri, porque não tinha outra cara para fazer diante de alguém que foi deixado para trás. Durante alguns segundos ela ficou parada, em silêncio, como se recuperasse memórias de muito longe, até me olhar com um rosto muito sério e temeroso perguntando o que a gente tinha feito ali. “Pra resumir, foi como ter um circo dentro do quarto!” e saí pra ela poder assimilar.

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Redecorar

Vem, senta aqui, me conta. Quais são os teus planos pra mim? Estou disposto a todo tipo de loucura, qualquer nível de entrega e tanto faz os riscos que vou correr. Hoje é o dia que marca o início do seu controle sobre a minha vida. E falando assim até parece coisa ruim, parece escravidão, posse. Mas não é! Dou me mundo inteiro de bom grado, com gosto, tudo nas tuas mãos. Vou ficar de fora assistindo você reorganizar tudo, fazer do seu jeito, me moldar para ser o seu encaixe, a sua moldura, o seu vaso pra crescer as tuas flores.

Pode escolher. Me faz trocar o guarda-roupa inteiro, escolhe meu novo corte de cabelo, a maneira como faço minha barba e se faço uma nova tatuagem ou não. Pode escolher. Eu, depois que te encontrei, não tenho mais vontade de decidir nada por mim. Tenho quase certeza de que tudo que você decide é mais acertado e justo do que o que eu escolho. Já faz tempo que tenho dificuldade em comprar roupas, ou em definir que tipo de perfume eu devo usar. Resolve pra mim, me escolhe do jeitinho que você gosta e elimina tudo que não te agrada.

Não me incomoda. Não me parece tirania. É uma devoção desmedida, uma entrega consciente, mesmo absurda e insana. Eu quero mais é que você me desmonte todo, separe todas as peças e reconstrua melhor, mais moderno, mais bonito. Confio tanto no seu senso estético e bom gosto que arrisco dizer que, se fosse possível, deixaria você escolher minha cor de pele, minha altura, meu nome e minha idade. Pode me refazer, me destruir e me remontar. Mas que seja eu! Mesmo que eu não pareça mais comigo, mesmo que não pareça mais com nada, que ainda assim tenha a chance de estar com você.

Eu quero que seja você. Que a mudança venha das tuas mãos, que as ideias venham da tua cabeça e que o mundo se pareça mais com a sua felicidade do que com a minha teimosia. Cansei de tudo, quero só o que você quer.Cansei de querer! Quero só o que você quiser. O mundo é mais bonito quando foi você que fez, você que disse, você que descobriu. É isso, acho que o motivo disso tudo é que me sinto tão bem vivendo no seu mundo que quero me tornar parte dele, sem remendo, sem chegar depois, sem ser agregado. Quero parecer peça original de fábrica, quero pertencer, quero ser isso tudo. Vou deixar você entrar no meu coração e arrumar essa bagunça que o povo fez aqui. Quero te dar a minha vida inteira pra você redecorar igual à sua!

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Quarta-Feira

Um monte de cigarros, todos fumados. Uma porrada de bituca velha socada num cinzeiro que mais parecia uma pilha de lixo, com filtros usados de todas as marcas misturados com papeis de Trident e 7 Belo. No resto da mesinha o campo de batalha estava formado. Garrafas de cerveja meio bebidas, copos, alguns trincados, dois quebrados e um monte de amendoins jogados e pó de cinza de narguile misturado com cinza de cigarro misturada com cerveja derramada misturada com um pó branco, cocaína, eu acho, não sei, não vi ninguém cheirando. Na verdade, não vi muita coisa que acho que aconteceu.

Tem uma mancha vermelha grande no tapete, que deve ter vindo de cima da mesinha. Acho que é catuaba, ou vinho, mas pode ser também groselha, sempre tem groselha nessas merdas de copos que quebram bem em cima do tapete. Bom, vai fazer companhia pras outras manchas. A TV tá ligada, sem som, no canal pornô, mas eu tenho certeza que não liguei. Alguém ligou, acho que lembro de todo mundo aqui no sofá assistindo, rindo horrores e umas pessoas fazendo a “dublagem” das cenas. Não deve ser difícil dublar filme pornô, né? Sei lá, às vezes o som nem é tão importante assim.

Minha roupa está ok. Não sei onde foram parar meus tênis, mas isso é o de menos. Por algum milagre não tem nada derramado em mim, pelo jeito não estou rabiscado, nem com pasta de dentes na cara. Bom sinal de maturidade da galera, antes isso seria de lei. Esse meu sofá precisa de substituição urgente, tempo, cartão vermelho, expulsão, sacrifício, guilhotina e morte. Péssimo para dormir, ótimo para sentar. Qual é o sentido? Você se sente confortável sentado, aí quer se deitar para ampliar seu conforto e é obrigado a enfrentar o inferno na Terra. Não dá mais, vou terminar com ele logo menos, pode apostar.

Esse solzinho entrando pela janela faz a sala parecer muito mais confortável. Deixa tudo meio sonolento, meio clarinho com sombras macias, me dá até um sono. NOSSA, que dor de cabeça! Jamais deveria ter tentado tirar a cabeça do sofá, parece que toda minha pressão foi parar no cérebro e ele quase explodiu. Meu deus, que coisa horrível essa de beber o mundo e não tomar Engov. Puta merda, que dó, meio violão tá ali jogado, com duas cordas quebradas, filhosdasputas! Para mim quem não tem respeito com criança, velho, bicho e instrumento musical precisa mesmo é se foder no colo do capeta.

Ah, sei la, to mal. Acho que tô enjoado, não sei ainda, tem um monte de coisa com defeito aqui nesse corpo largado no sofá. Tem uma dor estranha dos dedos, um mal jeito nas costas, um torcicolo de leve por causa da porra do sofá enganador, a dor de cabeça gigantesca e umas escoriações estranhas. Não lembro de ter caído nem de ter brigado com ninguém, mas tô aranhado pra caralho. No pescoço, nos braços, na barriga. Tentei abraçar um gato ou outro felino violento qualquer? Acho que tô sem cueca, não sei, esse ziper da calça ta me incomodando.

Tá, são 9h. Eu não deveria estar aqui, deveria estar na redação escrevendo qualquer coisa sobre saúde, bem-estar e vida leve. Eu deveria começar a viver o que eu escrevo, e não exatamente o oposto. Estou atrasado pra caralho, não vai dar pra inventar nenhuma história, minha cara deve estar entregando tudo, cada copinho que eu virei na boca, ontem. Cara, não sei de onde vem a energia dessa galera de fazer bagunça no meio da semana. Não sei de onde vem a minha também. Qualquer dia desses morro no meio de um brinde, fudido, caído no chão em estafa física. Putz, e hoje ainda é quarta-feira.

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