Arquivo mensal: janeiro 2013

Enquanto ele escrevia sobre mim

Dentre todas as emoções íntimas que tive em minha vida, nenhuma sequer chegava ao sopé do que eu experienciava naquelas noites infinitas, noites tão minhas quanto dele, tão sinceras quanto a própria vida acontecendo diante dos olhos. Nada, nenhum amor, nenhuma perda, nem mesmo as traições diversas. Nenhuma emoção era mais significativa, marcante, clara e intensa do que o sentimento de gratidão, alegria e realização que eu vivenciava naqueles instantes de total entrega.

Eu dançava o tempo todo. E fazia isso por pura incapacidade de segurar as emoções com o corpo relaxado, ou sentada, contida, cuidando para que não transparecesse pelo rosto, pelos gestos. Não, era o oposto. Eu entregava cada segundo de emoção, a todo momento, com o corpo inteiro. Dançava para exorcizar uma energia que me vinha enorme, muito maior do que eu, maior do que nós dois, maior que aquela sala, maior que o mundo. Eu deixava a alma conduzir, como um fantoche de carne, um corpo guiado por instinto e emoção, nada mais.

Meus pés seguiam as teclas, os ritmos variavam, eu variava, sabendo que quando as batidas aceleravam a emoção estava aflorando, e eu sentia o mesmo acontecer comigo. Às vezes havia silêncio. Cortante, longo, seco e eu sabia que aquilo era a dúvida, a confusão e o medo tomando o lugar de outros sentimentos. Era sempre uma intensa troca de altos e baixos, um trepidar de pés e teclas, dedos e timbres, passos e criações. Eu dançava enquanto ele escrevia sobre mim e ia somando pedaços de um corpo que eu ainda não tinha.

Os braços voavam, as pernas seguiam trilhas invisíveis e eu me sentia sendo recriada, renascendo como uma chaminé que cresce bloco a bloco, uma árvore que lentamente se retorce e se apresenta ao mundo. Ele escrevia sobre mim, desnudando todos os meus segredos mais profundos, inclusive os que eu ainda nem havia contado. Desenhava meu corpo com palavras que eu não sabia falar, que não cabiam na minha boca e que eu só conhecia quando ele escrevia. Me fazia linda como uma oração, ou coisa maior. Eu jamais seria a pessoa dos textos dele.

Ele fumava e bebia água. O tempo todo, como se fossem combustíveis para movimentar aquela máquina de me criar. Me fazia em situações não vividas, com amores não sentidos, em lugares desconhecidos, com roupas que eu não tinha e no fim eu chorava de emoção. Chorava todas as noites ao perceber que ele via em mim uma mulher que eu jamais encontraria no espelho, nem no mais mágico deles.

Quando acabava, arrancava a folha da máquina como se tirasse o pano que cobre uma grande invenção. Apanhava o copo d’água e o cigarro numa mão, o papel comigo dentro na outra e vinha até mim. Me entregava meu retrato feito em letras e linhas, ia até a janela, respirava fundo e terminava de fumar. Eu lia e relia o que ele escrevia muitas vezes, para depois, quando o cigarro já estivesse apagado e o copo vazio, eu me entregar como prêmio, como pagamento por me fazer renascer a cada noite. Ele me amava como quem janta um banquete na mesa do rei e eu me deixava ser devorada todos os dias para ressurgir ainda melhor através das teclas da máquina de escrever, no dia seguinte.

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Só não eu

Eu queria ser como ela. Queria ser uma mulher assim, desse jeitinho dela, ou desse jeitão, sei lá como definir. Só sei que queria ser igual. Às vezes acho que, em algumas coisas, ela é mais mulher que todo mundo, é mais fêmea mesmo, sabe? Ela é a mulher que a maioria das mulheres gostaria de ser, ou, ao menos, gostariam de ter um pedaço, de roubar uma qualidade, um traço. É a forma perfeita, o modelo ideal. É a mulher que Eu gostaria de ser.

Eu queria ter a coragem dela. Lembro do rosto dela, das expressões na cara, daquelas que a gente não consegue forjar, que vêm naturalmente a cada nova emoção. Lembro da expressão de desespero confiante quando surgia um problema, lembro de como se mantinha fria, focada, séria e lisa diante das situações mais malucas. Eu queria ter aquela frieza, aquele sangue gelado, a rapidez de raciocínio e o peito pra segurar a bronca na hora que desse tudo errado.

Eu queria ter o corpo dela. Eu lembro das outras meninas comentando como ela era certinha, como tinha as coisas todas no lugar, como suava a camisa para ter um corpo bonito. Eu não queria suar, mas queria ter aquele corpo. Aquela barriga lisinha, bonita igual das modelos que fazem propaganda de iogurte ou absorvente. Aqueles pernões duros e femininos, sem moleza, sem músculos marcados, do jeito que eu sempre sonhei. Queria aqueles peitos do tamanho exato pro corpo, sem silicone, sem truque de roupa, sem mágica. Era o corpo que eu pedi pra Deus, só que nela.

Eu queria ter aquele apartamento, aquela família, aquela calmaria. Queria ter todo aquele tempo, toda aquela disposição, todas aquelas possibilidades. Eu queria ter aquela cama, aquelas roupas, aqueles perfumes, aquelas lingeries e aquele namorado pra tirar todas elas de mim, na marra. Queria o namorado pra bagunçar a cama, pra lamber o perfume dos meus pulsos, pra jogar as roupas pelo chão e pra acordar naquele quarto, naquele apartamento, comigo. Eu queria aquele cara pra mim, pra me amar de verdade, me querer até o último fio de cabelo, e eu, dentro dela.

Eu queria aquele autoconhecimento. Queria saber guiar, saber o que é que funciona, saber o caminho das pedras e ter o mapa sempre à mão. Queria gozar em todas, um monte de vezes, mordendo os lábios, gemendo no ouvido dele, arranhando aquelas costas, sentindo o peso dele sobre mim e sabendo dizer exatamente o que é que ele deveria fazer em seguida. Eu queria me conhecer assim como ela se conhece. Queria me sentir confiante no inverno, cheia de blusas, no verão, só de shortinho e camiseta e de madrugada, vestindo só pulseira, brinco e perfume. Queria aquela sensibilidade.

Eu queria tudo dela. A cor dos olhos, o timbre da voz, a bunda dura, as panturrilhas malhadas, os sapatos legais, as saias e os vestidos que funcionam em qualquer situação, a confiança, a certeza, a capacidade de persuadir, os amigos fiéis, os contatos importantes, o salário generoso, as viagens paradisíacas, a casa bem decorada, o namorado gostoso, os orgasmos múltiplos nas noites de sexta-feira, nas noites de sábado e nas manhãs de domingo, o amor correspondido, a vida mansa, os dias de folga e um futuro pela frente. Eu queria ser mulher como ela, sê-la, sei lá. Eu só queria não ser uma mulher como eu, mas não sei o motivo.

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Único

Meu coração parou de bater por alguns segundos, com o rosto gelado, os olhos estalados na cara e os pensamentos todos embaralhados. Não é o tipo de coisa que você está preparado para ouvir da mulher que ama, ou que costumava amar, ou que pensava que amava, ou que tem alguma coisa a ver com o seu amor. Não mesmo, homem nenhum está preparado para isso assim, tão claro e seguro, jogado na mesa como se fosse um truco, como se fosse um par de reis, como se fosse uma carta de baralho.

Ela ria, mas um riso sincero, de quem realmente achou engraçado, de quem se surpreendeu com uma situação cômica inesperada. Os cabelos muito compridos todos bagunçados, alguns colados na testa suada e o corpo apoiado na cabeceira da cama, lá longe, muitos quilômetros distante de mim, sentado no chão do quarto, encostado na parede, assimilando uma facada em forma de frase, em forma de palavras mágicas da morte. Acho que morri um pouquinho depois daquilo.

De onde eu estava podia ver a sola de seus pés, lisas e claras, alguns pedaços das pernas enroladas nos panos sobre a cama, muito lisas, brancas, compridas. Via um pedaço do tronco, os peitos do tamanho da minha mão, uns mamilos quase sem relevo e uma cabeça alegre e eufórica logo acima, depois dos ombros muitos magros e ossudos. Ela ria e dizia que era uma daquelas situações em que a gente é ofendido, mas ainda sai no lucro. Dizia que não queria ofender, que não sabia que eu pensava de maneira diferente, depois gargalhava mais.

Eu sentia a respiração falhando, o coração apertado e a frase, a porra da frase, voltava a cada segundo, misturada com um monte de sentimentos que eu ainda não sei o nome. As pernas esticadas, os olhos querendo fechar, querendo chorar, sei lá o que meus olhos queriam. Toda a excitação e a euforia já tinham sumido. Era como pegar o tesão que eu sentia, mergulhar em gasolina e tocar fogo. Não sobra quase nada depois de alguns segundos. Eu já tinha brochado fazia tempo, sentia meu saco encostando no chão de carpete e pensava que, depois daquelas palavras, meu pau nunca mais levantaria com mulher nenhuma.

Ela se levantou, se vestiu, passou por mim e sentou-se perto da porta, numa mesinha daquelas que os motéis gastam o mínimo possível para colocar nos quartos. Aí me disse que eu não precisava ficar daquele jeito, que eu ainda era especial, que com o tempo eu ia me acostumar com a ideia. Ela era louca se pensava que eu me acostumaria. Nenhum homem se acostuma a ouvir “você é um dos melhores sexos que eu tenho feito ultimamente”, quando está convicto de que é o único.

Eu pensei no número de caras que estavam ocupando o mesmo lugar que eu. Comendo ela semanalmente como eu. Dando presente e fazendo juras de amor como eu. Passando tempo juntos, ficando juntos, estando juntos, como eu. Eu não queria ser porra de sexo nenhum, não queria saber se meu pau era “uma delícia” ou não, não estava nem aí para o número de vezes que ela gozava comigo, ou a intensidade, ou as circunstâncias. Eu só me interessava em ser exclusivo, em ser o único, mas isso eu não era, talvez nunca tenha sido.

No final, depois que já tinha mostrado todo o sarcasmo, toda a falta de sensibilidade, ela veio até mim. Agachou na minha frente, no meio das minhas pernas abertas e olhou no meio da minha cara. Ali eu pude ver a maquiagem um pouco borrada, a boca seca, sentir o perfume que ela usava e perceber que a orelha esquerda estava sem brinco. Mas não disse uma palavra, foi ela quem falou. “A vida não é como a gente quer, nem como a gente vê, nem como a gente imagina na nossa cabeça. A vida é o que é, e eu sou o que sou. Mas no fundo você me conheceu assim, não foi? Ou vai dizer que você pensou que fosse o único?”, riu e saiu. Eu fiquei.

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Vai viver, mulher!

Vai acordar de manhã cheia de assuntos inacabados na cabeça. Não vai ter para quem contar, nem com quem discutir, vai pegar a bicicleta com o dia ainda nascendo e vai para a rua. Vai pedalar para resolver os problemas, para achar as respostas das perguntas difíceis, vai suar pra caralho, vai sentir o vento na cara e, mesmo sendo perigoso, vai pedalar alguns segundos com os olhos fechados, para sentir que o corpo voa quando se quer voar. Vai voltar para casa com a sensação de que o dia recomeçou, de que é uma segunda chance de dizer “olá” para as coisas do mundo.

Vai tomar banho, o banho mais demorado do mundo naquele dia. “Graças a Deus é sábado”, está tudo bem se demorar um montão, se encher a banheira, se ficar deitada sem se mover nem um milímetro a ponto de a água parada parecer sólida. Não importa se vai dormir e acordar morrendo de frio. Se vai passar meia hora se masturbando até ficar com dor no pulso, pensando em cores, formas, cheiros e frases soltas em vozes diferentes. Vai tirar um tempo para si, porque toda mulher precisa de um tempo. Depois, só por capricho, vai se secar e sair pelada pela casa, com uma toalha na cabeça e o corpo livre para o que vier esbarrar com ele. Umas gavetas, uma calcinha qualquer, um sutiã qualquer, uma tonelada de cremes, hidratantes, redutores, clareadores, protetores e fim, vai estar pronta.

Pronta para o quê? Vai se perguntar quais são os planos para o dia e não virão respostas. Depois vai comer alguma coisa saudável, ligar o computador, receber convites, receber propostas, fazer propostas e em duas horas o dia vai estar cheio de programas. Vai bater a saudade dele, da companhia dele em alguns almoços com amigos, em alguns passeios por algumas ruas em alguns bairros. Vai bater a saudade porque é isso que as saudades fazem: elas batem. E batem pra arregaçar, pra estourar a nossa cara. Daí a gente apanha calado, todo dolorido, ou entrega os pontos e chora depois da surra. Ela vai ser forte e vai aguentar o linchamento caladinha.

Vai prender o cabelo, colocar um vestidinho casual, coisa de andar no sol, dia simples e tal. Vai encontrar uma amiga, vai comer salada, vai falar de viagens, de lugares, lembrar de histórias do passado, descobrir umas fofocas da vida alheia e vai pedir um docinho para a sobremesa, porque ninguém é de ferro e limão é azedo pra cacete.

Depois vai encontrar outra pessoa, fazer outra coisa, umas compras, um cinema, uma visita a um outro amigo, uma reuniãozinha, um pedaço de tarde, uma história nova pra descobrir e vai passar o dia nisso. Vai atender o telefone muitas vezes, tirar algumas fotos, mandar muitas mensagens e responder muita gente. O bom de ter celular e amigos é que o dia, mesmo que solitário, fica cheio de outras coisas. Vai rir, gargalhar, se sentir leve, se espantar e viver bem. Vai estar lá, acima de tudo. Porque a pior coisa de uma vida boa é não estar de corpo e alma nos momentos simples que ela desenha para nós.

Depois, mais tarde, mais à noite, vai receber uma ou duas amigas em casa, pra falar alto, falar o que for, falar a merda que vier, porque não tem homem na casa. Não mais. Não tem homem, mas tem uma mulher que se vira pelos dois. Que agora vai levar os dias do jeito certo, um pé na frente do outro, aprendendo com os erros, aprendendo com os exemplos e aprendendo a qualquer custo. Vai receber as amigas e vão conversar de coisas íntimas, vão falar dos ex-namorados, do sexo que faziam com eles, dos orgasmos que tinham com eles, das brigas que tinham com eles, das aventuras que armaram com eles, das coisas que sentem falta e que vinham deles, das coisas que não querem encontrar em nenhum outro homem, dos defeitos inaceitáveis deles e, no fim, vão voltar a falar das trepadas com eles, dos tapas, dos puxões de cabelo, das vezes que pensaram que iam morrer e outros episódios muito bons, porque só homem acha que mulher não conta essas coisas pras amigas.

Depois vai dormir, com a casa já vazia, depois que as moças forem embora, cada uma com seu buraco aberto no peito e na memória. Vai juntar as taças de vinho, vai arrumar as almofadas da sala, vai colocar as cadeiras debaixo da mesa e vai perceber que esse era o momento em que entrava no banho com ele, que beijava a boca dele cheia d’água, que colava o corpo no dele e que tinham transinhas banais e previsíveis, mas que, agora que não existem mais, parecem a melhor demonstração de amor do mundo. Vai tomar banho sozinha, sem beijo, sem apertão na bunda, sem dedos correndo a nuca, os cabelos, sem olhos e sem hálitos. Vai tomar banho, sentir falta de um mundo velho e vai desejar dormir por três dias seguidos.

Vai se deitar na cama gigante pra uma moça tão fina, no escuro, ouvindo baixinho os carros lá fora, como se fossem o som da respiração da madrugada. Vai pensar um monte de coisas, um monte de assuntos, um monte de problemas, vai ter mil lembranças embaralhadas, de sons, de músicas, de frases e de cenas. Vai se sentir pequena, esmagada por um peso invisível que vai descer do teto e afundá-la no meio do colchão como se fosse para nunca mais sair. Vai oscilar entre semi-sono e semi-lucidez e quando estiver quase dormindo vai receber uma mensagem no celular. Vai ler “VAI VIVER, MULHER!” e vai sorrir, pra dormir de vez, acordar para pedalar no dia seguinte e seguir com as coisas de todo dia. Ela vai conseguir, eu sei que vai!

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Catequese

O quarto escuro e aquele pedacinho de carne misturado com o resto das sombras. Hoje em dia sexo no claro é visto como putaria, coisa de filme pornô, sacanagem. Aquele sexo de troca de química, da coisa de pele, do lance da sintonia, da conexão, tem que ser à meia luz ou no escuro. Não era o caso. Só estava escuro para ficar pior. Ela perdida num mundo muito distante dali, muito diferente do real, e eu esperando que ela não voltasse nunca mais desse outro lugar.

O nariz vermelho, as mãos e os pés gelados, o corpo seco como uma sacola vazia. Era a mulher dos meus sonhos de dez anos antes, completamente entorpecida, murcha, vazia, esperando para se entregar para mim. Sempre tive um fascínio doentio por figuras submissas e apáticas, como um escravo voluntário, um abate hipnótico. Veio até mim com os olhos cinzas, afônicos, sem cheiros e sem tatos, sem horizonte, e eu os comi com meu olhar vívido e colorido.

Um beijo com gosto de morte, um abraço com sensação de adeus, uma declaração de amor em tom de sentença e um corpo com forma de fantasma. Eu tinha nas mãos um futuro que não era meu, pronto para ser destruído, esperando para ser dilacerado, amassado, cuspido e entregue às ruas novamente, ainda mais vazio, ainda mais moribundo, ainda mais transparente. Toda vez que destruímos a alma de alguém ela passa a ficar invisível para o resto das pessoas. Fora daquele quarto ela era quase tão sólida como o ar.

Seca, com a boca machucada nos cantos, alguma doença, alguma acne, alguma saliva doente passara por ali. Olheiras profundas, escuras e nítidas. Uma testa cravejada de marcas, pequenas feridas, marcas de espinhas e outras coisas que foram arrancadas à força dali. A vida, aquela coisa que a gente valoriza enquanto está existindo, daquela menina também tinha sido tirada dela na marra.

O cabelo seco e desgrenhado, pintado de um tom de vermelho estranho, que já tinha desbotado, meio marrom, meio cobre, meio sem cor nenhuma. O pescoço magro e comprido segurava a cabeça bem longe do colo, puro osso, enfeitado com dois peitinhos que não faziam o verão de ninguém, com os mamilos afiados como agulhas, reagindo ao frio dentro da escuridão daquele quarto perdido num pedacinho de inferno bem no centro da cidade.

A barriga negativa mostrava um umbigo tímido, se escondendo atrás de um piercingzinho bem mal colocado, um furo meio fora do centro e abaixo, um pedacinho de pele coberta de pelos ralos e escuros. A pele branca como um pedaço de papel novo, reluzente, lisa e marcada, arrepiada como quem acaba de ser atravessado por um espírito velho perdido no plano errado. As unhas dos pés pintadas de vermelho, num tom indicado para mulheres de muito mais idade do que ela. Estava desfiguradamente nua ali.

Da vertical para a horizontal, dos cabelos para o pescoço e do pescoço para os seios. E da boca para os dentes e dos dentes para o ventre e os lençóis amassando embaixo de tudo, trancos, golpes, gestos, gotas e um pedaço de esperança escorrendo pelo canto da cama e indo para baixo do estrado, se misturando com poeira e escuridão. No fim, “vinte conto, moço” na voz monotônica adolescente de uma mulher jovem demais para dizer aquilo.

Estava feito. Mais uma criança acabava de entrar para o time dos adolescentes que serão adultos fantasiados de demônios, vagando por aí, agredindo sonhos e matando gente feliz por dentro. Eu sabia o que era estar do outro lado, sabia como era a sensação de vazio e desespero, mas não era justo guardá-la só para mim. Eu catequizava, doutrinava, ensinava e admitia. Todo dia era assim. Eu acrescentava sempre mais um dígito na conta. Sempre, como um esporte, como um placar, como uma coleção, como um hobby. Destruir vidas para passar o tempo.

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Leia Caio Fernando Abreu

Logo que surgiu um sopro de chance de voltar para São Paulo, de voltar a morar e habitar aquela loucura, tratei de caçar meu livro – inacabado – de crônicas do Caio Fernando Abreu. E digo “morar” porque quando se trabalha em um lugar como aquele, dá-se o sangue até o talo, ou pede-se a dispensa. Não existe um ser que trabalhe em São Paulo sem passar mais tempo na labuta do que em casa. Sendo assim, mora-se no trabalho e visita-se o lar.

E o livro do Caio F. Abreu vem como a cereja do bolo no meio de todas as possibilidades que esse retorno anuncia. Eu antes odiava o cara, mas odiava porque fui obrigado a odiar. Por causa das frases soltas no twitter, por causa da melosidade recortada maldosamente de dentro dos textos, por causa da fama estranha e por causa de toda a merda que fizeram com a obra dele. Eu era daqueles que dizia “Caio Fernando de cu é rola” e saia andando porque conversar sobre autor é como conversar sobre música, futebol, política e aborto.

Depois de um tempo percebi que odiar autores é uma puta de uma besteira. O cara tem uns dez livros publicados, sei lá quantos ensaios, não sei quantas peças de teatro e roteiros co-escritos com outras pessoas e ainda tinha saco para trabalhar em jornal diário. Tem que ser foda pra fazer tudo isso e, pensando assim, não dava mais pra continuar odiando o brother do “que seja doce!”, então mudei. No fim, depois de ouvir o aviso da Suellen de que “Caio F. Abreu não é isso que vocês estão lendo na internet” decidi me dar uma chance de gostar. E gostei.

Suellen sabia das coisas. Caio, mesmo morto pra caralho, ainda sabe. E sabe mais sobre viver em São Paulo do que qualquer outra pessoa. Por isso, quando caiu no meu colo – e caiu mesmo – a chance de voltar pra megalópole da zona, meus instintos voltaram a procurar “A vida gritando nos cantos” para me lembrar de como São Paulo era maluca nos anos 80, como ainda é maluca nos anos 2010. Tô com saudade de lá, do metrô de lá, das cores de lá, da criatividade que baba dos prédios, das janelas, das vitrines e dos copos de café. E depois da chegada do Starbucks, bota café aí…

Em tempos de estar na merda e estar no paraíso com a mesma frequência é sempre bom ler, assistir, escutar gente que sabe exatamente onde é que a gente está se metendo. Eu conheço. “Morei lá” de dezembro de 2008 até setembro último. Passei muita coisa, conheci muita rua com grafite bacana, vi muito panfleto com mensagem sacada, encontrei muito lambe-lambe colado em placa alta pra cacete e comprei livros que tinha um cheiro mais valioso do que o próprio conteúdo. Eu amo, porque não amar São Paulo é como dizer que o Rio de Janeiro é feio. E não é, apesar de tudo!

Mas se você não ama, é porque não conhece. E se você pensou “é claro que eu conheço, mas não amo mesmo assim” é porque só conhece a parte ruim. Tudo no mundo tem uma parte ruim. As pessoas lindas podem ser chatas, os filmes incríveis podem ter trilhas sonoras ruins, os discos mais legais podem ter capas horríveis, tudo tem uma parte ruim. Mas no fim, as pessoas lindas ainda são muito lindas, os filmes incríveis ainda são muito incríveis, os discos legais ainda são muito legais e São Paulo, mesmo sendo uma merda de um puteiro de gente maluca, é linda e interessante mesmo assim.

Por isso, caso você esteja indo para São Paulo, para estudar, trabalhar, morar, comer alguém, ou tomar café, recomendo de coração: leia Caio Fernando Abreu!

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Um cachimbo de bolhas azuis

Um cachimbo, simples assim. Um cachimbo que soltava bolhas ao invés de fumaça. Bolhas azuis. Fumava quando precisava de vida, quando estava tudo turvo, quando os caminhos já não tinham direção. Fumava porque fumar bolhas é respirar sonhos e sonhar nunca é demais. Eram bolhas da cor das latas antigas de cerveja Antártica, da cor da Azul Linhas Aéreas, da cor da Pfizer, da cor dos antigos ônibus de Santo André. Eram bolhas azuis e ele era da cor de todo mundo.

E fumava na rua, caminhando, respirando e pensando, porque fumar em casa pinta as paredes e nem todos os cômodos ficariam bem se fossem azuis. Fumava na rua pintando o céu, pintando a luz da Lua, pintando a cor do vento. Enquanto fumava pensava sobre as coisas ruins de se viver correndo daquilo que nos cerca. Fumava para fugir das responsabilidades, das obrigações de todos os dias, das coisas que tinha de fazer, mesmo contra a vontade, mesmo sem querer. Os outros também faziam coisas contra suas vontades, mas não fumavam.

O dia nublava, a temperatura caía, o Sol ia embora e ele saia com o cachimbo para o mundo. Não queria a casa, não queria a rua, não queria o centro, não queria a periferia, não tinha destino. Mas fumava para encontrar algum. Azul como um esmalte fosco da moda, azul como uma tampa de caneta Bic Cristal. Azul como uma nota de dois. Bolhas tão azuis quanto contas em uma guia de Iemanjá, tão ciano quanto um jeans novo. E a cada bolha, um dente, a cada dente, um pedaço de corpo, a cada pedaço, uma alma inteira, e a cada alma, um novo recomeço. Um trago, uma existência. Se renovava a cada respiração, a cada inspiração azul seguida de uma expiração mais azul ainda.

Apertava a respiração, limpava os pulmões, tentava relaxar e dormia muito. Dormia dez, doze horas por dia, para tentar acordar em paz, assumir um papel que não era seu, fazer coisas que não eram suas, alimentar sonhos que não tinha, desejar coisas que nunca quis e tentar viver em sociedade, sendo parecido, sendo semelhante. Na verdade era imenso, maior que tudo, maior que todas as coisas, do tamanho de uma consciência, que se expande, que cresce a todo momento sem parar. Era do tamanho que quisesse ser, mas se concentrava num corpo simples, humano, porque era mais fácil. Enquanto se apertava em uma figura limitada e pequena, levava sua existência para outros níveis em forma de bolhas, pequenas e brilhantes bolhas. Bolhas azuis, subindo em direção ao céu, na hora em que ninguém via. Ele as chamava de ideias…

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Fogo n’água

Era fácil porque era errado. Se fosse coisa certinha, se fosse do jeito que o mundo manda, não seria tão natural. Mas não, era criminoso, era imoral, era novidade, então era mamão com açúcar para nós. São Paulo parecia uma menina safada, com suas ruas molhadas, sua garoa persistente, suas esquinas luminosas, janelas entreabertas e seus prédios residenciais promovidos a micro cidades verticais. Eu estava prestes a cruzar uma fronteira.

“Treck!” fez o portão automático e eu o empurrei para dentro. Bati e, logo em seguida, outro “treck!” anunciava a abertura do segundo portão. Caminhei para uma porta de vidro, empurrei, ela rangeu, senti meus pés pisarem carpetes, tinha uma grande mesa com revistas e cartas, dois elevadores com aquela janelinha de grade, do tipo antigo e eu esperei. Olhei ao redor procurando a escada, mas não achei. Foda-se, “é no primeiro andar, mas vamos de elevador” pensei conversando comigo mesmo. Subi.

O porteiro já havia anunciado a minha chegada e quando a porta do elevador abriu ela já estava lá, me esperando, com uns shorts tipo aqueles de lutar boxe, uma camiseta com cara de pijama moderninho, meias e polainas. Tava tudo bem, mas as polainas me incomodaram um pouco. Foda-se, não estava tão ruim. Fui entrando e conheci a cozinha, a sala, o quarto de um cara que não estava, a porta do quarto de uma menina que estava dormindo e, finalmente, o quarto dela. Naquele prédio/microcidade cada apartamento era uma rua e cada quarto uma casa inteira.

Lá dentro, uma cama, um guarda-roupas aberto, um mancebo segurando casacos, cachecóis coloridos, uma prateleira com fotografias, um criado mudo tomado por livros e um par de olhos atentos decifrando minhas reações enquanto adentrava aquele universinho tão particular. Ela veio na minha direção, me abraçou, sorriu olhando para a minha boca, bem de pertinho, depois foi até a porta e a fechou, sem trancar. “Não vai trancar?” perguntei apreensivo. “Não precisa, ninguém vai entrar enquanto você estiver aqui”, respondeu, e depois apagou a luz, para revelar uma porção de luzinhas de natal amareladas ao redor da cama, iluminando o mundo todo naquele cubículo.

“Quer ouvir uma música?” me perguntou em tom de sentença. Do notebook sobre a cabeceira a luz branca quebrou o clima por um segundo e antes que eu pudesse pensar em algo começou a tocar Feist. “Fire in the water… eu amo essa música”, contou, antes de, sem aviso e cerimônias, tirar a blusa e revelar o tronco nu. A figura feminina, doce e delicada, naquele momento, se tornou incisiva e autoritária. Eu me senti intimidado pelo gesto e, por puro instinto, tirei minha camisa também.

Acho que estava nítido no meu rosto que aquela situação me deixava nervoso. “Tudo bem!” ela disse, como se lesse meus pensamentos. Depois veio, me beijou com calma e eu sentia seu peitos apertados contra o meu corpo. Deitamos na cama, meio desajeitados, deslizando para trás, tirando as roupas que a gente alcançava e o que eu via era um corpo magro e macio desenhado em luzinhas natalinas jogadas pelo chão. Me apaixonei dali pra frente, cada vez mais, a cada segundo. Era errado, proibido, não recomendável e eu estava completamente envolvido.

Já montada sobre mim, me apertando a cintura com a força das pernas, das coxas duras, se pôs a dançar comigo dentro de si, de olhos fechados, com as mãos atrás do pescoço, num sexo que nunca ninguém havia feito comigo antes. Eu transcendia e tinha “fire in the water” pra todo lado, com os contornos amarelados desenhando todo um quarto novo, todo um mundo novo e eu participando de escravo espectador. Depois se curvou, me deu um beijo e me disse coisas. Dentre elas, “vai ser o melhor sexo da sua vida! Afinal… a gente não está fazendo nada permitido, não é mesmo?”, para, no segundo seguinte, me envolver com braços e pernas numa trepada que durou semanas naquele mundinho particular.

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Uma namorada que pensa

Era pra ser tudo lindo, como se fosse uma bolha rósea e lisinha cheia de coraçõezinhos dentro alimentando o nosso amor perfeito. Era pra a gente se dar beijinho de esquimó, daqueles com o nariz, sabe? Era pra andar de mão dada no sol, tomando sorvete, dando risada de umas histórias bobas, rindo da vida, rindo só pra mostrar mundo que a gente se ama. Era, mas não foi assim, por que, né? Não sou criança!

O problema é que nesse mundo de gente que não se basta, gente que não se completa, você escolheu uma mulher completa. Uma daquelas raras que não precisam de um pedaço, que não sentem vazio, que não estão procurando uma alma gêmea. Você escolheu uma mulher que queria um parceiro, não um remendo, e aí fodeu tudo.

Eu esperava hombridade, esperava atitude, esperava alguém comigo, no front de batalha, no vão da dúvida, se esgueirando no parapeito do cagaço e rindo de tudo no final. Não esperava alguém inseguro, alguém que não sabe o que quer de uma relação que tinha tudo para ser o filme do ano das nossas vidas. Será que eu me enganei na hora de juntar as nossas almas? Será que a gente não era tão parecido assim? Será que as nossas diferenças cresceram junto com o tempo que passou?

Se é pra trepar eu trepo com qualquer um. Hoje em dia tá difícil encontrar homem sem pau, todo mundo tem um. Se bobear, chamo umas amigas e elas quebram meu galho do mesmo jeito, caso eu esteja pouco atraente pro mundão lá fora. Não é só sexo. Eu gosto do sexo, mas queria gostar também dos seus planos, queria me apaixonar pela genialidade dos teus projetos, pelas suas ideias, queria achar que você me acrescenta alguma coisa, queria me sentir dividindo, não só somando.

O problema é que no turbilhão da rotina, a vida corrida, os compromissos iguais, os mesmos encontros, os mesmos horários, não deu pra perceber a merda em que a gente se meteu. Enquanto eu estou vivendo a nossa vida eu não percebo o quanto somos repetitivos, o quanto somos os mesmos de alguns anos atrás, o como não evoluímos em nada. A gente estagnou na mesma vidinha mamão com açúcar do começo.

Você sempre me dizia que as suas ex namoradas ficaram arrasadas quando vocês terminaram. Que elas diziam que tinham um namoro perfeito, que não entendiam o motivo do fim e, no fundo, era só você que estava de saco cheio. Seu período invicto acabou. Parabéns, você está curtindo o primeiro término de namoro que você não desejou. O primeiro fim que você não esperava, a primeira vez que foi pego de surpresa.

Sabe qual é o problema? É que eu não sou burra. Não fui criada pra esperar príncipe encantado, dar beijo em sapo ou coisa que o valha. Nem fui tutelada pra ser submissa às vontades de ninguém. O problema de tudo isso é que dessa vez você escolheu uma mulher que pensa. E eu penso o tempo todo, pro seu azar. É isso.

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Racional e infalível

“Sê tu um infalível milagre”

Na curva do horizonte tem um monte de metais tocando com um coral de negros americanos.

Lá ficou o amor da verdade, amor da canção, amor do jeito que os livros me ensinaram a amar.

Na curva do horizonte tem um monte de sombras correndo no milharal dos sonhos e dos enganos.

Lá ficou a minha alma, minha fé, meu coração e meus sentimentos. Hoje sou só reação…

Hoje sou só racional e infalível.

Só racional e infalível.

Racional e infalível.

Raça infalível.

Infalível.

Só.

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