Dentre todas as emoções íntimas que tive em minha vida, nenhuma sequer chegava ao sopé do que eu experienciava naquelas noites infinitas, noites tão minhas quanto dele, tão sinceras quanto a própria vida acontecendo diante dos olhos. Nada, nenhum amor, nenhuma perda, nem mesmo as traições diversas. Nenhuma emoção era mais significativa, marcante, clara e intensa do que o sentimento de gratidão, alegria e realização que eu vivenciava naqueles instantes de total entrega.
Eu dançava o tempo todo. E fazia isso por pura incapacidade de segurar as emoções com o corpo relaxado, ou sentada, contida, cuidando para que não transparecesse pelo rosto, pelos gestos. Não, era o oposto. Eu entregava cada segundo de emoção, a todo momento, com o corpo inteiro. Dançava para exorcizar uma energia que me vinha enorme, muito maior do que eu, maior do que nós dois, maior que aquela sala, maior que o mundo. Eu deixava a alma conduzir, como um fantoche de carne, um corpo guiado por instinto e emoção, nada mais.
Meus pés seguiam as teclas, os ritmos variavam, eu variava, sabendo que quando as batidas aceleravam a emoção estava aflorando, e eu sentia o mesmo acontecer comigo. Às vezes havia silêncio. Cortante, longo, seco e eu sabia que aquilo era a dúvida, a confusão e o medo tomando o lugar de outros sentimentos. Era sempre uma intensa troca de altos e baixos, um trepidar de pés e teclas, dedos e timbres, passos e criações. Eu dançava enquanto ele escrevia sobre mim e ia somando pedaços de um corpo que eu ainda não tinha.
Os braços voavam, as pernas seguiam trilhas invisíveis e eu me sentia sendo recriada, renascendo como uma chaminé que cresce bloco a bloco, uma árvore que lentamente se retorce e se apresenta ao mundo. Ele escrevia sobre mim, desnudando todos os meus segredos mais profundos, inclusive os que eu ainda nem havia contado. Desenhava meu corpo com palavras que eu não sabia falar, que não cabiam na minha boca e que eu só conhecia quando ele escrevia. Me fazia linda como uma oração, ou coisa maior. Eu jamais seria a pessoa dos textos dele.
Ele fumava e bebia água. O tempo todo, como se fossem combustíveis para movimentar aquela máquina de me criar. Me fazia em situações não vividas, com amores não sentidos, em lugares desconhecidos, com roupas que eu não tinha e no fim eu chorava de emoção. Chorava todas as noites ao perceber que ele via em mim uma mulher que eu jamais encontraria no espelho, nem no mais mágico deles.
Quando acabava, arrancava a folha da máquina como se tirasse o pano que cobre uma grande invenção. Apanhava o copo d’água e o cigarro numa mão, o papel comigo dentro na outra e vinha até mim. Me entregava meu retrato feito em letras e linhas, ia até a janela, respirava fundo e terminava de fumar. Eu lia e relia o que ele escrevia muitas vezes, para depois, quando o cigarro já estivesse apagado e o copo vazio, eu me entregar como prêmio, como pagamento por me fazer renascer a cada noite. Ele me amava como quem janta um banquete na mesa do rei e eu me deixava ser devorada todos os dias para ressurgir ainda melhor através das teclas da máquina de escrever, no dia seguinte.