Arquivo mensal: agosto 2014

Suzana

O Túlio acelera o carro e liga o rádio. Estamos um pouco bêbados depois de seis garrafas de cerveja, ele está com a camiseta suja porque babou uma boa parte de uma dose de uísque que pedimos para começar e eu estou com os olhos inertes. A gente não tem o que conversar, é de noite e está chovendo fraco. As luzes se multiplicam nas gostas espalhadas pelo vidro e ele insiste em não ligar o limpador. Odeio a sensação de não conseguir ver o caminho. Abaixo o volume de uma música qualquer que esta tocando e digo a primeira coisa que me vem.

A Suzana não gosta de mim, cara.

Quem falou?

Eu tô dizendo.

Viagem sua…

Não é. E ela não gosta de você também.

O farol fecha e ele segura o volante com a duas mãos olhando longe. Suzana é namorada do Túlio. Uma filha da puta. Loira, peituda, imbecil e filha da puta. E não gosta de mim. Nem eu dela. Não temos assunto, então o ambiente permanece aéreo. Ele conheceu Suzana numa festa do trabalho. Na época ela tinha ido buscar bebida no bar e eles cruzaram o olhar. No dia seguinte já era namoro. A Suzana veio para a nossa turma de amigos pouco tempo depois, quando ele assumiu que gostava dela de verdade. Ela chupou metade dos nossos conhecidos em menos de um mês saindo com a gente. Era deprimente. A Suzana era filha da puta demais.

A Suzana é filha da puta demais, cara.

Não fala isso.

A Suzana é filha da puta e puta demais, cara.

Ele não diz nada. O farol abre e ele sai com calma, dirigindo como se não houvesse destino algum. Aumenta o volume do rádio e está tocando a música nova dos Titãs. Uma merda. A chuva aumenta e a noite parece ainda mais escura. Eu quero fumar um cigarro, mas não dá para abrir a janela e o Túlio não fuma. Um raio acerta o topo de um prédio e, por uma fração de segundo, vemos o edifício todo se iluminar de azul. É “dia dos homens” e, por isso, estamos rodando sozinhos. Não tenho namorada. Suzana não está com Túlio porque está bebendo com umas amigas. Ele disse isso.

Cadê ela?

Disse que ia beber com umas amigas.

Tá.

Tenho certeza de que não é a verdade. Meu amigo deprimido não tem a menor ideia de onde a namorada está. Ele faz uma curva e entra em uma rua congestionada. Há bares e casas noturnas nas duas calçadas e o mundo parece melhor do lado de fora do carro. Penso que Suzana é, provavelmente, a pior coisa que já aconteceu na vida do Túlio e digo isso a ele. Não há qualquer reação. Dez minutos depois estamos completamente travados no meio da rua congestionada com pessoas se divertindo, apesar da chuva, em bares diversos.

A Suzana trai você, cara.

Quem falou?

Eu tô dizendo.

Viagem sua…

Não é. Ela trai você desde sempre.

Por que você tá falando isso?

Porque eu sei.

Ele me olha com uma expressão indecifrável. Um minuto se passa e o trânsito não anda. Quero quebrar o silêncio, mas não consigo pensar em nenhum assunto melhor. Retomo.

Sou seu amigo. Você deveria arranjar alguém melhor que ela.

Não tem ninguém melhor.

Você acha, cara. A Suzana é filha da puta demais.

Como você sabe que ela me trai? Você tem provas?

Olha ali.

Aponto, pela janela do lado dele, um casal sentado em uma mesa na varanda coberta de um bar. Um cara forte está beijando uma garota loira com peitos imensos. É Suzana. Túlio desvia o olhar e volta a fitar o casal no segundo seguinte. O cara aperta os peito direito da moça sem nenhum pudor e sua mão não consegue agarrar tudo. Não existe mão no mundo que consiga pegar o peito inteiro da Suzana de uma vez.

Larga ela, cara. Ela é filha da puta demais.

Não é a Suzana. É parecida.

Caralho, cara… você precisa de alguma coisa melhor na vida. Olha lá.

Ele congela o olhar no carro da frente e as luzes de freio tingem a cena de vermelho. Penso que ele quer explodir, mas nada acontece. O trânsito anda um pouco, ele não reage. Quando penso em dizer algo ele vira o rosto para mim e abre a boca, mas nenhuma palavra sai de dentro dela. Seus olhos estão molhados e seus lábios formam uma figura estranha. Meu amigo chora. Não sei o que fazer e fico olhando para ele. Na cena ao fundo vejo Suzana beijando o pescoço do cara e ele com a mão deslizando por sua coxa até o contorno da bunda. Até um semi-cego conseguiria identificar Suzana ali. Ela é o ser humano mais filho da puta que eu conheço na Terra, nesse momento. Provavelmente não terei chance de conhecer alguém pior durante minha vida. Túlio está me olhando há algum tempo e então fala.

Ela é a mulher que eu amo, cara. Amo de verdade.

Penso que o amor é uma coisa horrível e não deve acontecer para ninguém. Sinto pena. O amor é uma coisa filha da puta e cruel, faz pessoas boas se comportarem como idiotas e elimina qualquer traço de auto-respeito que um ser humano pode ter. Odeio Suzana com todas as minhas forças como se ela fosse alguém que tivesse dado um soco na cara do Túlio em um bar. Eu entraria em uma briga pelo meu amigo. Mas não é uma briga. Não há nada a fazer com mulheres assim, o mundo as ama e as protege, concluo. Mulheres como Suzana. Naquele instante, para mim o amor parece feito só de coisas ruins. Me senti com sorte por não amar ninguém.

A Suzana não gosta de você, cara.

É – ele responde, e no mesmo instante tenho certeza de que mesmo assim ele a pedirá em casamento e será um homem infeliz enquanto for possível.

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Eu vou mudar a sua vida!

A porta abre e ele vem na minha direção com o olhar voraz de uma serpente. Se esgueira pelos cantos, atravessa o corredor ladeando os batentes de porta e a moldura da janela e não para mais. Quando chega ao quarto eu já estou no chão, mole, entregue, com as meias pinicando e o cabelo sem formato. Nunca conheci um homem que me fizesse sentir dessa maneira, uma intensidade absurda, a vontade de gritar antes do primeiro beijo, a tremedeira sem controle, os arrepios que duram meses. Troquei meu medo da morte pelo medo que sinto quando ele chega. É uma sensação tão animal, tão primitiva e tão clara que nunca fui capaz de saber o que me amedronta. O medo que sinto dele já nasceu comigo, ou talvez antes de mim.

Às vezes, quando eu desperto durante a madrugada enquanto ele dorme, abro a porta do quarto e vou para fora ver o céu. Sempre que a gente transa eu fico com vontade de ver o céu, olhar as estrelas, a lua, respirar o vento frio da noite. Até hoje, com ele, tenho orgasmos em forma de galáxias e sinto como se minha alma estivesse mordendo alguém. Almas são capazes disso? A vida parece pequena perto de toda a intensidade que ele me traz. Meus poros se abrem a ponto de fazer minha pele arder e eu suo ofegante do começo ao fim, me sentindo esgotada e vazia durante horas. Ele leva embora algo de dentro mim. Algo profundo, sem nome e insubstituível. Sinto a existência se dobrando quando acaba.

Quanto tempo dura um sonho acordado? Me espanta a força física, a resistência, a determinação, não há cansaço capaz de fazê-lo parar, súplica suficiente que o detenha. Eu bebo água, olho para o relógio no criado mudo e volto, porque quando ele está aqui minha vida não pertence mais a mim. Eu não sou minha caso ele esteja por perto. Eu mudaria de nome para tê-lo todos os dias. Derrubaria minha árvore genealógica e usaria sua madeira para construir um castelo para nossos sonhos. No fim, quando ele coloca a roupa e anuncia a partida, tenho vontade de morrer. Meus antepassados se grudam a mim e me seguram nesse mundo numa tentativa de não me perder dentro dos meus próprios desejos. Na última vez ele deixou o dinheiro no mesmo cinzeiro de sempre, me beijou e, segurando meu rosto muito próximo do seu, penetrando meu olhar com seus olhos de morte, me disse que mudaria minha vida.

“Eu vou mudar a sua vida!”, ele disse. É o sonho de todas as meninas aqui da boate, mas eu tirei a sorte grande. Eu acho…

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De onde vem a calma?

Não posso generalizar – apesar de cometer esse erro em dezenas de textos que já escrevi -, então, para não dizer que todas são assim, posso garantir que conheci muitas mulheres sem senso de perigo na hora do desespero. Meu desespero. Ao longo da minha vida, da infância até agora, posso garantir que a maioria esmagadora de mulheres que eu conheci são do tipo que não se desesperavam nas situações que eu considerava perigosas ou assustadoras. Não estou falando de cair de um prédio ou de bater o carro, esses perigos não interessam a ninguém. Estou falando de medos subjetivos, medo de não ter resposta, de não saber o que fazer depois do beijo, de não saber para onde olhar, de não saber o que fazer ao acordar num quarto novo. Sempre tive medos assim.

No último fim de semana assisti a um filme que me fez pensar muito sobre isso, sobre esse medo ausente que muitas mulheres têm. É como se fosse um medo negativo, um instinto de ação nas situações em que um homem se sentiria indefeso ou encurralado. Me lembro de passar alguns apuros durante a adolescência quando ficava com meninas que não tinham medo das coisas. Eu era um cagão de primeira classe. Tinha medo de me apaixonar, medo de ser traído, medo de me apaixonar por outra pessoa no meio do caminho, medo de me flagrar infeliz e mergulhava nessas dúvidas sem resposta enquanto sentia minha mão sendo colocada em cinturas, seios, pescoços e rostos. Esse hábito que algumas mulheres têm de pegar a nossa mão e guiar o nosso tato sempre me apavorou.

A maioria das mulheres que eu conheci se jogavam de cabeça em incertezas vorazes. Que tipo de gente maluca se alimenta de situações assim? Existe uma calma perturbadora nas mulheres decididas. O mundo força a barra para que elas se desestabilizem, para que percam o controle, mas elas só sorriem e executam seja lá o que pretendem executar. Me apavorava o primeiro momento sozinho com uma garota nova. Me sentia em êxtase, com o coração acelerado e a adrenalina a mil, enquanto elas amoleciam, sempre sorrindo, perfumadas e macias, se mostrando calmas e decididas. A maior parte das meninas com quem eu fiquei quando era mais novo me metiam medo do começo ao fim, mas nunca pareciam sentir o mesmo.

Me fascina e impressiona essa calma sólida das mulheres diante da atenção de um homem. Ou de outra mulher, vai saber. Mesmo nos anos em que passei namorando – primeiro antes, e agora novamente – percebia e percebo essa mesma tranquilidade avassaladora nas meninas que ficam com meus amigos. Garotas que não enrijecem, não tremem, não vacilam, só vão, de vez, sem titubear. É coisa do impulso feminino? É saudável não sentir medo? De onde vem essa calma? Ela vem ou já está lá desde sempre? Acho que ninguém sabe…

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Por que não montar um escritório na praia?

O título desse texto é uma pergunta séria, apesar de soar um pouco utópica ou irônica. Estava conversando com a Laila, amiga e sócia, sobre como tem me assustado a situação em que se encontra a nossa economia. Não estávamos falando exatamente sobre economia, nem PIB, nem outra coisa profunda sobre as finanças do país, mas sim sobre como isso tudo afeta a nossa vontade de morar na praia. É que a gente da Geração Y (nascidos entre 1980 e meados dos anos 1990) tem um desejo voraz de criar coisas próprias, imaginar, inventar, construir, monetizar, multiplicar e vender. É a geração com o maior número de gente corajosa o suficiente para abandonar os patrões e se jogar no obscuro, incerto e desconhecido mundo do “negócio próprio”. Somos a geração do “quero ser meu próprio chefe”, mas acontece que não tá dando certo.

No fundo, o que a gente queria mesmo era morar na praia, viver numa boa, fazer festa, curtir a vida adoidado e não se preocupar com mais nada, mas isso é utopia demais. Então o negócio é abrir uma empresa onde você pode “empregar seu talento” e fazer as coisas “do seu jeito” e ser o seu “próprio chefe” para fazer as mudanças acontecerem. Tem tanta paulada nesse caminho que dá até uma deprezinha de leve, mas ok, ainda dá, com muita coragem e raça, para abrir uma empresa e ganhar dinheiro com ela. Nessa ideia romântica a gente não pensa que pode dar errado, que pra viver de pança pro ar na praia a gente vai precisar ganhar um bom dinheiro, que provavelmente a gente vai ficar estressado, doente e desacreditar no projeto umas duas mil vezes e nem em outros pedregulhos no caminho.

Em algum momento no meio dessa viagem rumo à independência e à construção de um império inabalável baseado nas nossas grandes ideias, percebi que a gente faz uma curva muito grande. Temos que trabalhar, ganhar dinheiro, enriquecer e envelhecer para, só depois, viver nossas vontades mais primárias, como passar uns cinco dias sem olhar pro relógio nem uma vez, surfando de manhã e de tarde, comendo açaí, grelhando peixe na churrasqueira e tomando suco de manga ou cerveja. Eu trabalho com internet, os clientes da agência para quem eu trabalho investem suas verbas para estarem na internet. A Laila também trabalha na internet, numa empresa que cria plataformas de e-commerce para outras empresas. O namorado dela também trabalha na internet, programando sites e desenvolvendo páginas. Sendo assim, por que a gente ainda está na cidade? A internet pode ir conosco até a praia.

Eu adoro dinheiro, de verdade, assim como muita gente gosta. Não é problema gostar de dinheiro, isso não me torna pior ou menos confiável que ninguém, mas eu gosto de muitas outras coisas também. Gosto de paz, de dias tranquilos, de dias e mais dias sem nenhum compromisso e isso não existe assim tão fácil. Então, se der, quero fazer um pouco disso enquanto ainda sou jovem, não quero esperar o tempo passar. Ficar na cidade esperando o mundo melhorar para montar minha empresa que, um dia, vai me permitir viver dias assim, é pegar o caminho mais longo. Não há nada de honroso em escolher o caminho mais longo sem necessidade. A gente devia usar essa nossa cabeça boa, cheia de ideias que dão dinheiro, que vão nos deixar ricos, que vão nos fazer felizes e famosos, para bolar uma coisa bem mais simples como morar na praia, por exemplo.

Como montar um escritório na praia e começar a ganhar dinheiro de lá? A gente vai dar um jeito.

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Se não fossem feitas de estrelas, do que seriam as paredes?

– baseado em acontecimentos desse mundo.

As paredes se desfazendo em cascatas de estrelas, todas espalhadas pelo chão, ao redor já não sobrava muita coisa, não tinha mais aquele quadro da moça nua se cobrindo com um pano, nem o vaso de cacto, nem aquele violão bacana que encantava todo mundo. Existem momentos da vida que, mesmo sem ninguém contar, a gente sabe que são os últimos. Sempre dá pra saber quando é a última vez que a gente vai ver ou fazer uma coisa. O medo da solidão é como um mensageiro que vem entregar o telegrama avisando que alguém morreu, mas ele mesmo não tem culpa da morte. “O medo nunca é culpado do mal que nos causa”, pensei.

Depois são sempre os mesmos roteiros, árvores sem folhas, todas tortas, animais sonolentos, finais de tarde acinzentados e uma vontade de quebrar tudo. Se fosse para destruir a casa, começaria pela televisão. Nos filmes sempre parece, ao protagonista, ser gratificante destruir a tela com algum programa passando, telejornais, no meio de uma fala importante do William Bonner, por exemplo. “Israel intensificou o ataque aéreo nesta tarde de” PLAU, CRAAASH!!! E lá se vai a televisão em milhares de pedacinhos de vidro, todos mortos ou agonizando, espalhados pelo mesmo chão que antes estava tomado de estrelas de parede. “Se não fossem feitas de estrelas, do que seriam as paredes?”, pensei.

Os cabelos vão ficando estranhos com o tempo. É engraçado perceber que, quanto mais triste se é, pior é o aspecto dos cabelos. Os dele já iam caindo na frente da vista, opacos fios castanho escuro, alguns ensebados, sem vida, como se fossem um anúncio para quem o visse de longe. “Sofre-se aqui”, anunciam os cabelos aos transeuntes. Lê-se cartas antigas, cartões de aniversário, postais de países muito frios, fotografias recortadas de jornais de folhas amiúdes, todo tipo de música triste e tecido macio. As lembranças doem mais do que a própria dor. É como curar cortes com palha de aço, secar sangramentos com panos cheios de gasolina. A labirintite que se sente é a nossa tontura ou o mundo acelerando fora de controle? Ele não sabia. “Sabe-se muito pouco sobre as nossas dúvidas”, pensei.

No resumo da ópera, coitado, era só uma vontade, só um plano, só uma ideia e, sem querer, acabou sendo real. É perigoso quando nossas vontades se realizam. Era um cara, uma noiva, uma carreira, uma família e uma menina, um cabelo macio, um par de olhos curiosos, pouco mais de quinze anos, meia dúzia de palavras que ninguém ouviu e uma porção de beijos proibidos. A quem estamos magoando enquanto estamos sendo felizes? Se o arrependimento pesasse iam precisar de uma balança bem grande onde ele pudesse descansar suas memórias. Apesar do que dizem, aprende-se muito pouco enquanto se está ensinando. “Vai saber que tipo de história vão contar sobre mim um dia”, pensei.

Me deu dó desse cara, no fim das contas.

“Me deu dó desse cara”, escrevi.

 

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