Fumava, fedia a cigarro o dia todo, coçava o saco o dia todo e ficava na janela o dia todo. Magro como um pau, branco como um pão tirado do forno antes da hora, com os cabelos já na altura dos ombros, pretos e sebosos, um bigode desgrenhado e cheio de falhas, uma tatuagem bem deformada no antebraço esquerdo. Um dia fora uma água, hoje era uma mancha, como um câncer de pele ou uma queimadura. Era um homem feio, pouco cheiroso e fumava.
Caminhava pela casa de quatro cômodos como quem não vence o tédio. No andar de baixo um boteco fantasiado de padaria e lanchonete, em cima, a casa, ele, um chão de tábuas de madeira clareadas quimicamente e só. Bebia café em copo americano, fumava um cigarro depois do outro, com calma, mas sem pausas, ficava de calças jeans e cinto, sem camisa e sem calçados, olhando para as janelas abertas e vendo os dias passarem. O dinheiro só vinha, ninguém sabe como, mas vinha. Todo fim de mês ele caia na conta, vindo de alguma fonte e ele gastava tudo com comida mínima, muito cigarro, pó de café e prostitutas. Adorava prostitutas, não era muito bonito e fumava.
Pelo bairro tinha fama de ser roludo. Teve até uma história sobre uma putinha novinha, talvez adolescente, que não aguentou e foi embora sem cobrar. Era um ritual com hora e dia marcado. Toda segunda, quarta e sexta-feira, por volta das duas da tarde, aparecia uma moça de aparência duvidosa tocando a campainha na porta lateral do boteco. Todo mundo já sabia o que era. Quando a moça subia as janelas se fechavam, para abrirem três horas depois, quando viam-na saindo. Não tinha preferências. Eram gordas, velhas, negras, brancas, magras, jovens, altas, sérias, coloridas, baixas. Contratava todas sem preconceitos. Era comedor de puta, sem preconceitos, branco e fumava.
De noite, se não estivesse muito frio ou chovendo, deixava a janela da sala aberta, apagava as luzes de dentro da casa e no silêncio da escuridão, depois do boteco já ter baixado as portas, tocava violino para as estrelas. Ficava lá, tocando muito bem, diga-se de passagem, olhando para o mundo adormecendo, fumando pelo canto da boca e dedilhando o instrumento por horas. Ninguém mandava parar porque era bom mesmo, mas mesmo que mandassem, ele não pararia. Era o tipo que namora a noite, que curte seu próprio momento e aquilo era importante. Era músico virtuoso, amante das estrelas e fumava.
Um dia decidiu tomar banho durante horas. Avisou o boteco que a água da caixa ia acabar, entrou no chuveiro com cinco sabonetes, muitos vidros de xampu e só saiu quando já tinha lua no céu. Ficou cheiroso, com cabelos levemente enrolados como se fosse um vocalista de banda indie, fez a barba e o bigode e de repente pareceu bem menos feio. Plantou flores nas jardineiras das janelas, que andavam cheias de terra e poeira. Ligou pra uma prostituta inédita, como sempre e transou de janelas abertas, deixando a vizinhança assustada com os gritos e urros da moça durante a tarde toda. Naquele dia a moça não foi embora e ele não tocou violino. Era limpo, cabeludo, bom de cama e fumava.
No dia seguinte a mesma moça gritou durante todo o dia. No fim da tarde ouvia-se apenas o ranger dos móveis, o som do chão, mas ela, já rouca, não emitia som algum. Durante a noite eles foram vistos na janela, nus, se beijando e olhando para o céu. Ela ficava olhando para as estrelas, ele apontava cada uma e explicava coisas sobre o céu, o espaço, os signos, o amor, a paixão e a morte. Ela sorria, colava seu corpo ao dele e se sentia protegida. Ele segurava o cigarro entre os dedos indicador e médio e apontava constelações, falava de poesia e música clássica, antes de tragar e contar mais. Era romântico, inteligente, atencioso e fumava.
Um dia ele morreu. Morreu feio, cabeludo, de bigode, sem camisa, com o pau comprido esticado sobre a barriga seca, mole, cinza, com as flores morrendo nas janelas, com a casa uma zona, com o telefone sem tocar, com a campainha sem ninguém para apertar, sem ninguém por perto. Passou a noite sem violino, passou a madrugada sem estrela, sem lua, sem horizonte e signo. Passou a semana sem dar as caras, morto no chão da sala, esticado e ninguém soube de nada, ninguém soube nem seu nome. Morreu sozinho, no escuro, tossindo igual um idiota, fodendo tudo ao redor, com dor e sem ar. Morreu feio, pouco cheiroso, adorando prostitutas, livre de preconceitos, branco, músico, amante de astrologia, sendo bom de cama, tomando banho todo dia, com os cabelos já passando dos ombros, romântico, inteligente, cheio de atenção para dar e fumando. Na verdade morreu só porque fumava, o resto só servia para mantê-lo mantinha vivo, mesmo…