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Raquel: a irmã negra

Eram todas mulheres pretas. Naquela época, ao menos. Escuras como a noite, com dentes brancos e afiados, queixos fortes e braços firmes. Rosângela, Roseli, Rafaela, Rosana e Renata: todas negras! E ainda tinha uma outra, mas essa era forasteira no ventre da própria mãe, tátil e real demais. Eram moças bonitas, ou nem tanto, mas com a beleza da vida dura estampada nas caras, nos ossos salientes no colo, nas pernas musculosas, nas bundas duras e redondas. Pretas, fortes e lindas, como era de se esperar. Seis filhas da mesma mãe, uma negra tão incrível quanto a própria mãe natureza. Pariu seis meninas no mesmo dia e depois morreu. Cinco viraram estrelas, uma virou planeta, mas isso é coisa pra depois.

Rosângela matava filhos alheios. Era a menor, mais baixa e magra de todas. Matava crianças, sim, eu sei! Saía de madrugada pela janela do quarto, pulava do peitoril para um galho, deslizava para o tronco, descida até o chão e caminhava amassando folhas secas na escuridão. Invadia casas de gente desconhecida e cortava as gargantas dos pequenos enquanto ainda dormiam. Nenhum som, nenhuma pista, nenhuma vítima viva. Não errava, mas acordava no dia seguinte sem saber. Dormia e era tomada por um sonambulismo assassino que não dava as caras à luz do dia. Foi a penúltima a sair do ventre da mãe Terra.

Renata era gorda. Tinha um rosto redondo e suado e exibia um sorriso alegre 24 horas por dia. Quem via a moça dormir podia jurar que ela sorria de olhos fechados. Cozinhava para quatrocentos. Era seu dom, sua missão, sua vocação e sua penitência. Foi a única que herdou os dotes culinários da mãe, mesmo sem tê-la por perto para ensinar nada. Quatrocentos pães com geleia, quatrocentas canequinhas de café com leite, quatrocentos pedaços de bolo de milho. Isso só para quem acordava. O almoço e o jantar eram mais caóticos, mas não fazia diferença: ela passava a vida cozinhando e rindo, sem reclamar ou se cansar. Fora a terceira a nascer.

Rafaela era lésbica, ninfomaníaca e mentirosa compulsiva. Chupava e dedava todas as amiguinhas quando ainda estava na escola. Agora, já com 20 e poucos anos, assim como as irmãs, se dá ao capricho de transar com uma moça por dia, sob a desculpa de ajudar as meninas a conhecerem o próprio corpo. Ela sim, conhecia o corpo de todas as mocinhas. Era uma preta criada com base no diamante escuro, na pérola escura, no carvão seco. Tinha peitos que não cabiam em decotes comuns, coxas que não se seguravam em vestidos comuns, mãos que não se contentavam em apenas tocar e dentes que não se cansavam de serem brancos. Existiam boatos de que um dia, no futuro, todo homem da aldeia teria chifres e todos, sem variação, seriam plantados em suas testas pelas mãos e línguas de Rafaela. Ela foi a última a chegar.

Roseli era albina. Uma preta que não podia com o sol, não podia com a luz, não podia com o próprio dia. Sabia tudo sobre estrelas, tempo, espaço e espíritos. Convocava reuniões na sala de casa e só chamava gente que já morreu. Sabia tudo sobre os dias de chuva, os tempos de seca, as grandes aparições e os nascimentos exóticos da aldeia. Tinha fama de feiticeira, de bruxa, de alquimista e de vidente. Mas, na verdade, astrolábio, livros, regras e cristais amarelados eram suas verdadeiras armas contra o mundo real. Roseli vivia em uma outra dimensão e era consultada como um oráculo que tudo sabe e tudo vê. Foi a quarta a nascer, mas alguns acreditam que, por ter vindo branca, estava sem alma, então, por consequência, natimorta.

Rosana queimava as coisas. Tinha de dormir na terra, deitada no chão e sem roupa. Tudo o que a moça tocava entrava em combustão. Acendia o fogo, cozinhava com a irmã Renata e olhava para o horizonte quando queria esticar os dias. Queimava o sol com os olhos e o fazia subir por mais alguns minutos. Soprava labaredas gigantescas e levava florestas, idosos e cães à loucura, enquanto se queimavam acidentalmente. Adultos, crianças e outros bichos não se prejudicavam no fogo de Rosana. Eram chamas esverdeadas, seletivas e inconstantes, quase como se fossem mágicas. Foi a segunda a nascer, mas mentia para qualquer um, dizendo ter sido a primeira a sair do ventre da mãe. “Acendi uma tocha na frente e minhas irmãs seguiram minha luz na hora de nascer”, era o que ela dizia.

A primeira a nascer foi uma outra. É uma que não é tão negra. Na verdade, é parda quase branca, de um tom de pão recém saído do forno quase impossível de acreditar. É o tipo de mulher diferente das que vivem na aldeia. Tem a bunda branca, branca de verdade, quase como se não tivesse a mesma pele. A frente dos peitos também é clareada, assim como a nuca, as canelas e as virilhas. A irmã mais velha tem outras cores e outros talentos. Ninguém diz seu nome. Ninguém olha diretamente para o seu rosto. Ninguém jamais ouviu sua voz.

A última irmã, conhecida como “R. Negra” não tinha jeito de gente. “Érre Negra não é dessa vida. Veio de outro tempo para nos mostrar alguma coisa que não sabemos hoje”, diziam os velhos. A moça organizava enormes encontros de estrelas e chamava, por gestos, a irmã guru para ouvir os astros falarem sobre música, amores e criações. R Negra chamava os espíritos para comer pizza, chamava os bichos para beber água e chamava os futuros para se misturarem com os presentes. Dimensões todas trocadas dentro de canequinhas de café. A menina chamava as outras vidas para morrerem aqui, junto conosco. Quanto mais fazia isso, mais branca ficava, mais diferente se vestia, mais estranhamente vivia.

A primeira é a mais preta de todas. Com a pele da cor da sua e da minha, com uns olhos verdes estranhos, escuros e acinzentados, com a bunda das negras, com a pele das brancas, com a força das negras, com o cabelo das brancas, com o olhar das negras, com o sorriso das brancas, ela escurecia tudo ao seu redor. Roubava a luz dos outros seres, como se bebesse almas e apagasse sonhos. R. Negra tem a alma escura e, por isso mesmo, sempre foi a verdadeira Mãe Preta. Uma dia ela matou as outras cinco irmãs, mas isso é história para outro horário, quando a vida real voltar a ser mais importante do que essas coisas todas que aconteceram por aqui.

Tem nome. Raquel. Mas ninguém sabe disso e, no fim, que diferença faz um nome, não é?

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