Acumulação

Deu uma acumulada, é verdade, mas o principal problema não é esse, é que eu sempre prometo que vou tirar o atraso e ele só aumenta. Acumulou coisa de antes, teve coisa inacabada, coisas que eu deixei pra depois porque achei chato demais, outras que eu simplesmente abandonei antes mesmo de começar, porque não achei que era o momento. Tô falando dos livros. Meu quarto tá cheio de livros acumulados, que geralmente não estariam aqui, mas agora estão, porque a vida mesmo deu uma acumulada. E acumulou a porra toda, meio que num motim de faltas de fluidez.

Não sou capaz de ler mais de um livro por vez, só consigo assimilar uma história depois de ter terminado a outra, mas no momento tem umas cinco obras, com temas e levadas muito diferentes, inacabadas, espalhadas por esse meu palácio de 45m² que eu chamo de quarto. É muito metro pra muita coisa acumulada. As revistas, coitadas, estão embolorando a gosto do vapor do banheiro, ficando enrugadas e velhas mesmo antes de serem lidas. Tem revista de arte, misturada com revista de surf, misturada com revista de comportamento, misturada com revista de mulher pelada que não se assume como tal, misturada com revista de moda e tudo, tudo mesmo, misturado com roupas.

As roupas curtem mais o meu quarto do que eu mesmo. Esses dias minha camisa de flanela estava agarrada ao meu violão num coito selvagem que eu preferi não separar até hoje. Deu aquela acumulada, né! As roupas sujas estão misturadas com as limpas e eu já estou prevendo que vou ter que lavar tudo de novo porque já não sei o que foi que eu usei ou não. Perdi um pouco a noção das coisas com horários, das organizações básicas e da limpeza mínima. O vidro do box, da metade para baixo, está branco e embaçado, mesmo quando seco. É que já caiu tanto sabão que formou uma crosta que não derrete mais na água.

Desde que a Ilda pediu demissão e a gente ficou sem empregada, passei a tentar manter o quarto minimamente habitável para receber visitas e minha então namorada. Hoje não recebo ninguém, não vem ninguém, e quem vem, não passa do portão, lá fora, na rua, então a coisa foi ficando meio calamitosa. Tem moedas misturadas com cartões, misturadas com canetas coloridas, misturadas com folhas com desenhos de coração e outras com desenhos menos figurativos e importantes. As coisas foram se acumulando umas sobre as outras e agora a preguiça me domina porque, afinal, ninguém mais vem aqui.

Caras como eu, desse mesmo tipo, com essa merma energia e essas mesmas convicções, odeiam gente que caga regra. Caras como eu não conseguem viver do padrão e das normas sociais. Mas acima disso, caras como eu não conseguem viver muito tempo sozinhos. Começam a acumular coisas. Acumular saudades e objetos, embalagens vazias e roupas que ainda precisam ser lavadas. Caras como eu não lavam os tênis até que a sujeira comece a comer o tecido e não deixam a cama arrumada por nada nesse mundo.

Caras como eu, desse mesmo signo, dessa mesma aura, desse mesmo orixá, dessa mesma santa padroeira, desse mesmo ordenhado, dessa mesma região, não conseguem se cuidar. São muito bons em cuidar dos outros, manter as pessoas comendo, indo ao médico, tomando as vitaminas corretas e dormindo um número razoável de horas. Mas eu mesmo não consigo nada disso. Subi na balança de calça, jeans, tênis e camiseta, com o celular no bolso, e deu 95 kg. Antes, pelado, dava 97,5kg. Aposto que essa perda incrível foi só músculos, porque parei de ir correr, parei de ir pra academia, parei de pedalar e parei de comer. Acumulei paradas, acumulei livros pra ler, acumulei revistas velhas e acumulei roupas pra lavar. Só não acumulei convicções, opiniões e certezas. Essas a gente tem que renovar o tempo todo.

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